segunda-feira, 14 de julho de 2014

Do outro lado também tem um mundo

   Era surpreendente olhar nos olhos castanhos dele e pela primeira vez vê-lo inteiro. Era desconcertante ter tantas palavras a serem ditas e ouvir melhores ditas por ele; admito: as certezas dele têm mais paixão que as minhas, ao menos, à esta altura. O compromisso do chamado era meu, a iniciativa deveria partir de mim e mesmo que eu quisesse e tenha resistido, não me neguei a fazê-lo, fui até lá e me dobrei ao compromisso. Há coisas que fazemos por gosto e outras tantas por justiça. Não há merecimento a ser julgado; justiça é dívida paga na hora, sem escolha de credor.

  Ele falava com a desenvoltura que eu nunca teria, um pouco por escolha e outro tanto por falta de vocação, calo muito mais do que deveria, foi ele quem me disse. Mas, mais do que qualquer palavra bem dita por ele e as não faladas por mim, eram os olhos que se reconheciam e buscavam entendimento, eram as mãos que, vez ou outra, falavam antes das vozes de dentro ganharem espaços. Discordamos e, ainda, cada um de nós tentou a última cartada da persuasão: quem ganha um embate, palavra apaixonada ou silêncio convicto?

  Olhar para alguém de outro modo, ver neste outro um mundo diferente daquele que lhe atribuímos, mas completamente respeitável, amável e passível de alguma admiração é a justiça que eu andava por negar. Quando ele me ensinou o que eu há muito negava por aprender, quando ele enfático, mas igualmente doce, corrigiu-me, não me abati, não tentei recurso algum além da admissão. Olhei uma última vez nos olhos marrons de alguém a quem eu  me recusava a conhecer e vi pela primeira vez um mundo dentro dele. Arrependi-me do esquecimento, da incompreensão e intolerância com alguém que carrega tanto quanto qualquer outro, alguém que também traz maravilhas dentro de si.

  Vi-o ainda descer pelas escadas brancas, sua nuca mal raspada virar à esquerda, seus pés grandes, desajeitados nos sapatos pesados, que só ele usa, seguir rumo ao que ele tem de mais caro, que é o próprio mundo ou, o que me pareceu bem possível, o mundo de outras pessoas, que como eu, o negam. As pessoas são muito além do que aparentam ser; disto sempre soube, mas, frequentemente, me engano. Grata pela conversa, pelas intervenções certeiras e necessárias, pela voz doce e pelo mundo apresentado, ainda sorri sozinha e comemorei por não ter vencido embate algum. A vitória dele me fez crescer, as palavras melhores dele me fizeram, ao menos neste dia, um pouco mais humana. Fui ofertar algo que eu achava que era justo a alguém e eu é que saio com uma dívida paga. Nem sempre a humildade é calada, nem sempre a soberba é faladora. E eu disposta sempre a aprender, aprendo nos lugares mais improváveis, tenho as lições ensinadas pelas pessoas menos imaginadas.

  O dia do perdão chegou, não selamos com um abraço ou coisa parecida, mas com respeito e clareza; do outro lado da ponte, uma cidade; do outro lado da fronteira, um país; do outro lado da ilha, um continente; noutra margem de mim, uma pessoa. Possivelmente, ele não falará menos, eu não falarei mais, mas eu vi um outro mundo, enquanto olhava uns olhos escuros. Não há viagem mais valiosa do que esta.

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