sábado, 30 de agosto de 2014

Olhos de muleta

  Os olhos dizem muito sobre uma pessoa, ao que ela se entrega ou se nega, pelo que se perde ou onde se encontra. Os olhos são os primeiros a alcançar uma descoberta, uma nova pessoa, um lugar modificado; no olhar, um apaixonado é desnudado e o seu sentimento desvelado, mesmo a contragosto. De um outro lado, os olhos, são os últimos a concederem um perdão, quando nos frustramos, decepcionamos ou somos feridos, a palavra pode voltar macia, depois de algum tempo, o sorriso chegar sem tanta dificuldade, as mãos se darem novamente, os abraços enlaçarem o antigo afeto, mas os olhos, estes chegam por último, porque custam muito a perdoar. Eles se negam ao mergulho na alma de quem um dia destroçou a nossa, evitam a demora, passam rápidos e só vão se reacostumando, muito lentamente, à dureza do confronto que também é um perdão.

  E, é por isso que o olhar não cabe na instância ordinária ou mecânica da vida; ao olharmos damos o direito de alguém nascer ou morrer em nós. Quando ele, o homem das muletas permanentes, acostumado a sua condição, mas não cego às condições alheias, passa por ela e, de repente, volta e se detém por alguns segundos com um aviso doce, travestido de sabedoria arrogante, de cuidado, porque percebe a sua muleta temporária, "cuidado com isso aí, com chuva, o piso fica molhado e um escorregão é fácil, hein!"; sinto o quanto os olhares têm se eximido dos outros, têm se furtado o próprio direito de ampliar relações e roubado do outro a possibilidade da nossa experiência diversa. As muletas temporárias de uma pessoa pareceram importantes a quem está definitivamente aprisionado as suas, mas isto não foi o suficiente para condenar ao isolamento, seus sentidos, sua sensibilidade ou o seu compromisso com um desconhecido. O desconhecido é visível para ele.

  A cena curta, rápida, perdida numa multidão, durou tanto que talvez nunca acabe, porque a cada hora eu revivo o mesmo instante: duas muletas antigas se solidarizando com outras duas viandantes. Um homem, vencendo sua pressa e oferecendo cuidado à mulher desconhecida. Um cavalheiro se responsabilizando por uma senhorita desajeitada no corredor.
 
  Ao negar o nosso olhar ao outro, nos fechamos dentro da nossa própria miséria e não permitimos uma troca capaz de desnudar nossa prosperidade não imaginada. Quando deixamos de oferecer nossos olhos a uma outra vida, minguamos pobres, infelizes e pequenos. Não é preciso muito; dois olhos são capazes de validar uma existência, um par de olhos videntes podem modificar muitas histórias ao seu redor. Alguém olhou para mim ontem à noite, não falou de muletas, nem da chuva ou do chão molhado, mas andei confortada por um cuidado e achei mais fácil caminhar, encontrei, a partir desses olhos distantes, mas presentes, um caminho mais suave. 

  Os olhos daquele homem não têm muletas, são dois fortes, ágeis, generosos e profundos olhos livres. Os de um outro homem também não, mesmo de longe, enxergaram a necessidade de uma outra moça manca, ainda que também temporariamente.



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