Os olhos dizem muito sobre uma pessoa, ao que ela se entrega ou se nega, pelo que se perde ou onde se encontra. Os olhos são os primeiros a alcançar uma descoberta, uma nova pessoa, um lugar modificado; no olhar, um apaixonado é desnudado e o seu sentimento desvelado, mesmo a contragosto. De um outro lado, os olhos, são os últimos a concederem um perdão, quando nos frustramos, decepcionamos ou somos feridos, a palavra pode voltar macia, depois de algum tempo, o sorriso chegar sem tanta dificuldade, as mãos se darem novamente, os abraços enlaçarem o antigo afeto, mas os olhos, estes chegam por último, porque custam muito a perdoar. Eles se negam ao mergulho na alma de quem um dia destroçou a nossa, evitam a demora, passam rápidos e só vão se reacostumando, muito lentamente, à dureza do confronto que também é um perdão.
E, é por isso que o olhar não cabe na instância ordinária ou mecânica da vida; ao olharmos damos o direito de alguém nascer ou morrer em nós. Quando ele, o homem das muletas permanentes, acostumado a sua condição, mas não cego às condições alheias, passa por ela e, de repente, volta e se detém por alguns segundos com um aviso doce, travestido de sabedoria arrogante, de cuidado, porque percebe a sua muleta temporária, "cuidado com isso aí, com chuva, o piso fica molhado e um escorregão é fácil, hein!"; sinto o quanto os olhares têm se eximido dos outros, têm se furtado o próprio direito de ampliar relações e roubado do outro a possibilidade da nossa experiência diversa. As muletas temporárias de uma pessoa pareceram importantes a quem está definitivamente aprisionado as suas, mas isto não foi o suficiente para condenar ao isolamento, seus sentidos, sua sensibilidade ou o seu compromisso com um desconhecido. O desconhecido é visível para ele.
A cena curta, rápida, perdida numa multidão, durou tanto que talvez nunca acabe, porque a cada hora eu revivo o mesmo instante: duas muletas antigas se solidarizando com outras duas viandantes. Um homem, vencendo sua pressa e oferecendo cuidado à mulher desconhecida. Um cavalheiro se responsabilizando por uma senhorita desajeitada no corredor.
Ao negar o nosso olhar ao outro, nos fechamos dentro da nossa própria miséria e não permitimos uma troca capaz de desnudar nossa prosperidade não imaginada. Quando deixamos de oferecer nossos olhos a uma outra vida, minguamos pobres, infelizes e pequenos. Não é preciso muito; dois olhos são capazes de validar uma existência, um par de olhos videntes podem modificar muitas histórias ao seu redor. Alguém olhou para mim ontem à noite, não falou de muletas, nem da chuva ou do chão molhado, mas andei confortada por um cuidado e achei mais fácil caminhar, encontrei, a partir desses olhos distantes, mas presentes, um caminho mais suave.
Os olhos daquele homem não têm muletas, são dois fortes, ágeis, generosos e profundos olhos livres. Os de um outro homem também não, mesmo de longe, enxergaram a necessidade de uma outra moça manca, ainda que também temporariamente.
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