sábado, 27 de setembro de 2014

Um dia de azul do cão

  As descidas são mais fáceis, não tem segredo, basta soltar o corpo porque, no final, as entregas são menos trabalhosas do que as resistências; é física, é a vida. Penso nisso antes de sair ao sol, antes de descer a rua curta e, por vezes, tão demorada na subida. E, agora, não demora muito para que eu alcance o seu fim. Entre os dois últimos prédios, um cão visitante. Eu que nunca o vi ali, desconfio que não seja um cão de rua comum, talvez seja morador de um dos apartamentos e desejoso de aventuras, tenha burlado a vigilância do ingênuo dono. É vira-lata, pequeno, patas curtas e corpinho muito ativo, olhos de alegria, de cachorro jovem e é esse seu "ar de explorador", de animal que fareja novidades, que desperta minha atenção. Ele sobe e desce muretas dos jardins pobres da minha rua. E em cada osbtáculo a entrega livre, descomprometida e irresponsável de um cachorro fugitivo.

  Admiro sua alegria fácil, sou contaminada pela agilidade em aproveitar os segundos; antes que o descubram, arrancando flores, dançando no gramado que ninguém nunca desfruta. O cão sabe que a sua liberdade pode não durar e por isso se deleita. Sozinho, antes de mim, se exibia ao ar, ao sol, às pedras da rua, sem selecionar público, mas também sem individualizar seu contentamento. Logo, ele me descobre, para por dois ou três segundos e corre para partilhar do meu espaço, coloca as patas na minha calça preta e as suja de marrom. Queria ficar brava, mas não tenho tempo, enquanto tento espanar a terra das minhas coxas ele prende os dentes na minha sapatilha e em um puxão delicado e esperto, arranca-a e me deixa com um pé descalço no meio da rua. Rápido, brincalhão, rouba meu calçado e corre para o outro lado da rua. 

  Do lado de cá, eu falo alto, suplico que ele não me envergonhe, não me deixe ser uma adulta descalça na rua, àquela hora; não me humilhe desse jeito. Ele não me ouve, parece se divertir com o meu desconcerto, a minha falta de jeito ao tentar comunicação; ele me convoca para uma brincadeira que eu achava que não era mais para mim. Corro atrás dele e ele de mim, morde minha sapatilha, coloca-a no jardim e antes que eu a pegue ele a segura com os dentes e morde mais uma vez. Eu imploro, falo baixinho, prometo um presente em troca e ele se ri. Eu que não posso enganar um cachorro; eu que aprendi a argumentar tão bem, não consigo dissuadi-lo, descemos o restante da rua em uma perseguição improvável. Suada, descabelada, correndo atrás de um cachorro desconhecido. - Vem aqui, cachorro! Não faz isso comigo!

  E eu não me cansava mais, não tinha medo de humilhação alguma, éramos dois e era fácil, leve, genuíno. Um laço iniciado pela ousadia dele e alguma gentileza minha. Uma relação começada sem um começo, sem hora planejada, sem evento peculiar como marca; uma intimidade sem suspeitas de ambas as partes. Entrega longa. Juntos, cachorro e eu, às duas da tarde de uma quinta-feira; descíamos uma rua, antes, desabitada de surpresas,  tresloucados, disputando uma sapatilha de couro. Viramos a esquina e alguém finalmente interrompeu a sua fuga e a minha liberdade. Um homem de cabelos brancos, chinelos também de couro e jornal na mão, à procura do fugitivo. Devolveu-me as sapatilhas, caminho e solidão. 

  Passado o imbróglio, dona dos meus pés calçados de novo, eu tive a certeza, aqueles doze minutos é a vida que eu sonhei. Os doze minutos essenciais de uma existência; a felicidade deve ser assim, sem a sombra de uma incompletude avariada, sem as somas com resultados que nunca batem. E sem que eu perguntasse, a resposta veio materializada num cão de rua. E o lampejo - é esta a vida que quero viver: atrapalhada por um afeto vadio e inofensivo às 3 da tarde, de uma quinta de céu azul. Não quero outra.

 Quando os olhos do nosso mundo nos negarem importância, existirá sempre retinas a nos descobrirem, a nos admirarem. Quando os que nos rodeiam não nos enxergarem mais com os olhos deslumbrados da novidade; é hora de buscar novas paragens. Os olhos não devem se cansar do que é sempre novo; nada é mais velho do que um olhar antigo, desistente das novidades que pululam. Eu esperava chuva e ganhei sapatilhas mordidas e a certeza de um dia azul-canino. Um cão me salvou de um dia ordinário e eu ainda não o recompensei por isso. A entrega é, ao mesmo tempo, trajetória e recompensa. As descidas, quase sempre, são o descanso das estratégias muito defensivas.



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