sábado, 18 de outubro de 2014

Escuta o que eu não sei falar

  Numa mesma sala, espectadores dispersos de um mesmo programa de TV, dividindo as partes de um periódico; na poltrona ao lado, mas numa distância continental.

  Me parece que dos aprendizados na vida mais desafiadores, quase da ordem da impossibilidade, é o da comunicação completa, profunda e sem entraves. Aprende-se a falar, ler, escrever, balançar a cabeça, comprimir e estender os músculos todos da face, mas em algum lugar, algo sempre parece incomunicável; infinito individual. Alguma coisa que morrerá conosco sem possibilidade de partilha, mesmo que as tentativas sejam constantes.

  E esse talvez seja o meu estranhamento na maternidade, ser responsável  por alguém cuja linguagem é tão peculiar e diversa da qual se está acostumado. É calor? Frio, talvez? Tem dor ou fome? Deseja ar fresco ou cama quente? Testar tanto, tentativas e suposições incansáveis, até um choro cessar, uma cabeça morna se aconchegar no colo e dormir. Foi sono.

  Na infância, tinha aquela brincadeira de testar a força da mente. Quando se queria muito algo, bastava mentalizar  o pedido e, antes,  testávamos com os amigos mais próximos situações corriqueiras: então pedia-se água e o amigo oferecia biscoito; pedia-se que o amigo se afastasse e ele se sentava; escolhia da caixa de lápis de cor, o azul e o amigo entregava o cinza, mas empenhados na possibilidade de comunicação mental, não desistíamos. Mais tarde, no caminho de casa, mentalizava a comida e a mãe fazia outra; em casa,  mentalizava o canal da TV e colocavam noutro.   

  E já adulta,  mesmo depois de tantos códigos aprendidos, aparentemente consolidados, a ausência de uma certa voz não se afasta. Por vezes, as palavras não dão conta de tudo o que se passa, a coisa parece não ter um só nome, era preciso um poeta, um homem que fosse amigo de todos os nomes e que nos inventasse um, algum qualquer que traduzisse esse estrangeiro que trazemos em nós. Das vezes que faltam nomes, vozes possíveis, gestos, olhares acertados, só a solidão acompanha. E se fosse enviada a uma sala cirúrgica e completamente aberta por um instrumento médico que revelasse tudo aquilo que se passa dentro? Tudo o que se quis dizer, o que ninguém nunca conseguiu alcançar, aquilo que se é e mesmo quando alguém olhou insistentemente para nós, mesmo quando alguém nos ofertou ouvidos generosos, jamais compreendeu. Aberta, exposta, num corpo cuja alma é trazida para fora, com todas as vozes falando num só tempo. E se essa possibilidade existisse?

  E se o homem do sofá ao lado, me trouxesse o vinho que eu gostaria de beber agora, se me oferecesse o doce, a completude, se me alvejasse com a resposta de um pergunta que  nunca saiu de mim? Se esse homem, na improvável maternidade, me ofertasse sucessivas tentativas de cessar meu choro seco e calado? Olho para ele, atravesso o obstáculo de uma mesa de centro e mentalizo uma parte improvável do periódico: - Esporte, esporte, esporte. Ele sorri e me passa a seção de cultura. Nossa distância-mesa é distância-continente. Eu nunca fui aberta num centro cirúrgico. Permaneço fechada e leio resignada a parte que me cabe.






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