segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

De um crime

  Quando os pais se separaram ela era ainda bem pequena, nem se lembrava dos dois juntos, nem entendia a possibilidade de uma relação amorosa entre ambos, tão opostos, tão distantes. Cresceu sob um clima de animosidade permanente; ele que não suportava ela, ela que o odiava, a menina no meio. Pequena, ainda, tornou-se grande estrategista, onde um ia, o outro não pisava; e dividir os eventos era trabalhoso, porque não bastava o número, teria que analisar a qualidade e o grau de importância de cada um. Formaturas tinha peso dois, por exemplo, logo, o escolhido para assistir sua colação de grau, ficava fora da agenda pelos próximos dois eventos. 

  Os pais casaram-se de novo, tiveram outros filhos, mas a angustia da agenda era só dela, assim como o dever da diplomacia - para não magoar nenhum dos dois; o estado de sítio - quando o encontro do ex-casal era inevitável e a possibilidade frequente de uma iminente guerra. Não era fácil carregar o peso que só ela conhecia: das estratégias criativas, da sensibilidade excessiva e cuidadosa a cada passo e palavra; das omissões e mentiras justificadas, que desde de cedo se dispôs a participar, para não causar maiores prejuízos e, principalmente, pela memória remota que lhe era negada - Em que contexto tinha sido seu nascimento? Não sabia. Os pais eram antes de se conhecerem e depois, só. Nem vídeos, nem fotos; juntos, só na certidão de nascimento dela.

  A vida sob torturante pressão parecia fazer dela mais forte, amadureceu rápido, assumiu compromissos e responsabilidades sem tanta dor ou apego. Ao passo que parecia ter nascido pronta, conhecimento antigo, sem nunca ter medo ou dúvida; conheceu na infância o pior da vida adulta: a vaidade, a competição, a covardia. Era ela quem assumia sua paternidade e maternidade, não os pais.

  Um dia, depois de anos insistindo, ganhou um gato, acordado formalmente com apreciação judicial - como uma infinidade de outras decisões em sua vida; aos advogados chamava-os afetuosamente de "padrinhos". Em poucas horas, do gato tornava-se inseparável: 
 -  Gato, gato querido, gato amado, gato mais lindo! 
Teve a elegância e sensatez de dar ao bichano um nome duplo, um em homenagem a mãe, nome do avô (que chamava quando estava na casa materna) e um nome em homenagem ao time do pai (que chamava quando dormia na residência dele). Antônio Vasco era sua companhia sonhada, com ele ela não tinha que medir palavras, escolher gestos, tomar decisões ou demonstrar afeto, ficavam os dois distantes, despojados, sem pedidos dele a ela, sem solicitações dela a ele. Antônio Vasco salvara-lhe da solidão e de ser adulta aos 13 anos.

  Até que na casa do pai, em um final de semana que passava com ele, Vasco não comeu quase nada, também rejeitou água e desidratou-se. Foram ao veterinário, fizeram alguns exames e medicaram o gato. Na casa da mãe, Antônio não parecia recuperar-se, a menina tão adulta, tão destemida, teve medo, fez vigília pelo sono do enfermo, buscou agradá-lo de todas as formas, recorreu ao terço da avó que ficava na gaveta da sua cabeceira, pediu o japamala e uma oração budista ao padrasto e quando parecia sucumbir ao desespero, Antônio Vasco acenou uma recuperação.

  Assistindo a dor da filha, numa noite, os pais trocaram as primeiras palavras ao telefone depois de anos de silêncio, não foram muitas, mas cada uma delas surpreendente aos ouvidos curiosos e incrédulos da dona do gato. A medida da convalescência de Antônio Vasco era a mesma da aproximação dos pais estranhos. Quanto mais demorava a saúde do felino voltar, mais próximos pareciam. Deram, inclusive, para frequentar os mesmo espaços e serem cordiais.
 - Muito estranho. 
Ela sentenciava.
- Muito suspeito.
Ela concluia.

  E começou a desgostar da nova situação. Seu sonho de reunião, acontecendo não por ela, achava, mas pelo gato. Pais estranhos ao que conhecia: gente educada, bem resolvida, conversando sobre amenidades, frequentando os mesmo eventos, compartilhando mesa, advogados sumidos, visitas sem juízes, sem papéis assinados. Um dia, a mãe mencionou um a lembrança passada, a cerimônia de casamento, achou que era com o padrasto, mas chocou-se quando ela disse claramente: - Com o seu pai, minha filha.

  Não precisavam mais dela, ela podia fazer como quisesse que ninguém mais se ofendia com nenhuma escolha, davam liberdade, clima ameno, sem seduções ou chantagens. Não conseguia viver assim. Antônio Vasco que adquirira uma enfermidade crônica, só unia mais a família que ela nunca tinha conhecido. E é difícil se adaptar ao novo, por melhor que pareça a situação, era na antiga que ela tinha raízes, sentia falta do suspense dos encontros, dos olhos pedintes de cada um dos progenitores, quando ela se despedia para seguir para outra casa, dos comentários maldosos sobre a madrasta pela mãe ou do padrasto pelo pai, achava engraçado.

  A gente se acostuma demais ao cenário  que compartilhamos, o ruim aos outros é, por vezes, o nosso ideal,  passamos a amar o clima a que somos submetidos cotidianamente. O perigo do costume é, em geral, negar a alma o vislumbre de algo verdadeiramente bom. Aos infelizes, a felicidade é suspeita e chata. Aos egoístas, qualquer solidariedade parece interesse. A fé, ao incrédulo, soa como fanatismo. As raízes muito profundas podem limitar novas possibilidades, antes planta insegura do que imóvel.  E por isso, começou a odiar o gato e toda a logística que o mantinha vivo. Queria a morte, desejava urgentemente a visita de algo que a tirasse desse desconhecido que vivia agora.

 Cansada do apaziguamento, da civilidade desconhecida, frequentando a sala de casa, tomada de ira, de uma cólera invejosa pela artimanha felina mais poderosa que todas as dela, ofereceu ao gato uma dosagem duplicada do seu remédio para os rins. Sabia fatal. Desceu à sala, sorriu aos pais estúpidos, junto com seus meio-irmãos estranhos a sua luta e os companheiros atuais de cada um e, ainda cansada pelo mal-estar dos últimos dias, desejou que o gato morto no andar de cima fosse o estopim para uma nova temporada de ataques. Ela esperava pela guerra, ela era a mais bem preparada de todos eles. Sabia. O aluno supera o professor, não é o ideal? Ela achava que sim. O gato pagou o pato. Qualquer juiz a absolveria num tribunal.



Nenhum comentário: