quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Mesmo que mude de cidade

  Os espaços guardam mais histórias do que qualquer memória individual é capaz de carregar,  mesmo as mais prodigiosas.  Porque toda memória tem certo limite de lembranças, que quase sempre são acionadas por algum estímulo involuntário exterior; cheiro, som, palavra, gesto ou uma situação déjà vi. Os lugares não. Eles permanecem com as histórias variadas e pessoais de uma imensa sorte de sujeitos, intactas, e basta uma revisita para que elas emerjam das profundezas mais veladas. Os espaços  podem e são, tantas vezes, lugar de reencontro com um outro tempo. É você diante de alguém que também é você, mas de outra época.

  Os lugares já conhecidos são amados e odiados mais pelo que guardam de memória do que pelo que oferecem no cardápio de comidas e bebidas ou entretenimento. Um lugar de sorrisos passados pode muito ser repetido pela necessidade de reviver as alegrias antigas ou evitado, justamente pelas boas lembranças incapazes de se repetirem. Porque se foram as pessoas ou o sentimento por elas. Um bom ou um mau lugar, frequentemente, será eleito pela memória que ele guarda.

  Hoje saí com ela em um passeio pela cidade, eu, ela e seu cachorro. Passamos pelo caminho que costumo caminhar e distraídas com a conversa, em determinada altura, fomos levadas pelo cão a uma praça pequena no centro da cidade, não demorou para que ela se incomodasse, tentasse a todo custo levar o cão dali. Puxava a coleira, dava comandos mais rígidos e o cão desobedecia. Dos três, certamente, eu era a única a não entender absolutamente a razão do cão desejar ficar e dela querer partir. Ela bradou com mais rispidez, puxou a coleira com mais força, ignorou os latidos do bichano, deixou para trás o boné que caiu durante a luta e seguiu numa fuga insana.

  Segui a dupla que ia mais a frente, segurando o boné ignorado pela sua dona. Depois de alcançá-los, não nos falamos por alguns minutos, eu esperando que ela iniciasse a conversa, ela recuperando voz, fôlego e equilíbrio; enquanto o cão ainda latia contrariado pelo caminho impedido de tomar. Coloquei o chapéu de volta a sua cabeça, ela agradeceu e quando estava pronta para retomar a conversa, já não precisava explicar, compreendi que o cão acabava de  farejar uma memória que ela fazia questão de manter enterrada no tanque de areia da praça.

  Conheço o cão e a dona há tempos, vez ou outra sou mais amiga de um do que de outro. Algumas vezes, visito a casa em busca do afeto do cão e acabo por me perder em uma conversa com sua dona que dura horas, invadindo madrugada adentro, noutras, bato na porta em busca de uma opinião dela, que sobrecarregada de compromissos me dá a coleira e o cão para passearmos pela cidade, até a meu coração se encher de calma e voltarmos, cão e eu, saciados da vida que assistimos lá fora.

  Não falamos da lembrança desenterrada pelo cão, mas soube que ali, na praça, no mesmo lugar, dois seres se dividem entre amor e ódio por um tempo do qual não se recuperaram mais. O cão, chafurdando em demasiada nostalgia e ela, afastando um tempo que alguém deixou cair e se recusou a pegar, do mesmo jeito que minutos atrás ela fez com seu boné. Eu abaixei, peguei-o, corri até ela e o pus na sua cabeça de volta; enquanto outro alguém deixou que ela pegasse um momento, corresse até ele, para se recusar a vesti-lo novamente. Ela então voltou, enterrou na caixa de areia a lembrança de uma perda e seguiu outros itinerários, até esta manhã, quando o cão, de olfato saudoso, redescobri-a.

   Um lugar na cidade que ela se recusa a frequentar há alguns meses, um lugar na cidade que o seu cão só consegue ter boas lembranças. Num mesmo espaço, memórias que ninguém conhece, além dos seus próprios donos, que são evitadas, revisitadas, cultuadas ou negadas. Mesmo que ela mude de quarteirão, a memória permanece, mesmo que ela mude de cidade, um dia ou outro vai se confrontar com a memória que tanto a fere. Neste caso, sou como o cão, prefiro desenterrar meus tesouros, mesmo que doloridos, a deixá-los na areia mal guardados. Os lugares se mantêm pelas memórias, os cães farejam isto.






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