sábado, 28 de março de 2015

É sanidade

  De oito ao meio-dia, de duas às seis; de sete às onze; de segunda à sexta. Mochila nas costas ou bolsa do lado, tênis ou sapato alto, lista na agenda, mensagens vistas, mas não visualizadas, a música no shuffle, a chamada no modo "espera". Polido, comprometido, pontual. Não dizer "não", tentar sempre um "sim", ainda que o pedido não seja um desejo genuíno, mas ter é questão de honra. Subir escadas, chamar elevadores, correr atrás do táxi, fugir da chuva, não atender a mãe, disputar o lugar na fila, comer depois de lavar as mãos, falar baixo, se calar na injustiça, não ver o diferente, ser indiferente com aquilo que não lhe diz respeito: - não votei, não escolhi, a culpa não é minha; é sempre assim, sempre foi, nunca muda; cada um tem o que merece, colhe o que planta.

  Do alto e de noite, a cidade é um emaranhado de luzes, sem fios aparentes; do alto, os barulhos são suaves, abafados; de noite, a dureza dos dias desaparece. A beleza do distanciamento, não fazer parte, não estar, não dividir espaços, não esbarrar, não ser "essa gente". O longe é uma invenção de segundos, que acolhe no cansaço. Fazer sem saber o porquê, viver por alguma promessa, que mesmo desconhecida, sempre nos chama de volta.  Do alto e de longe, a solidão de estar perdido. Todos estão, mas ninguém conhece o descaminho alheio, só o próprio é que fere mesmo. 

  Agora, em baixo, a cidade é outra; de perto, ela é quente, os fios estão expostos e as linguagens proliferam, assustam, confundem. Não é feia, é outra beleza, que também precisa ser vista. Entro, disputo atenção com outros iguais, que desconheço.

 - Um minuto, senhora. O homem  diz, sem nem olhar.
E se ele me engana? Se não voltar? Quanto tempo alguém é capaz de esperar? Um, dois, dez minutos, vinte anos? Há um tipo de pessoa que não volta nunca, despede-se com um "até logo", como se nas próximas horas fôssemos tê-lo de novo, mas abandona lugar e pessoas, sem aviso, sem desculpas, só segue atrás da promessa; dessa que nos faz continuar por tanto tempo. E se ele for o tipo? Estarei esperando alguém que não volta? 

  Olho ao redor e tento dividir a minha espera com alguém que também desconfie de uma fuga sem volta, mas todos preferem fingir lucidez e fé. Ninguém se desespera publicamente, ninguém assume a possibilidade do abandono definitivo. Mesmo na superfície, mantêm-se afastados, moram no longe. 

  Depois de um minuto, o homem volta, pega o papel da minha mão frouxa e segue com o pedido que eu não sei fazer, por isso o papel. Ele voltou, me atendeu, deu o "sim" do qual eu não precisava, mas que teimo tanto em ter, e assim, devolveu a sanidade, reforçou a promessa. 

  De oito às vinte três, de segunda à sexta. Não ver o mar, não tomar sol, não usar sandálias de dedo, não comprar pulseiras de pano, não comer sem guardanapo, não pensar em quem não volta, não desconfiar nas esperas, não perguntar ao vizinho por quê o choro, porque não é férias e o feriado é curto, porque o mês é de trinta dias e a culpa não é minha. Porque colhemos o que plantamos, não é assim? A sanidade é isso, de segunda à sexta, de oito às vinte três, anotou? A sanidade é essa certeza, que não pergunta, não tem medo do abandono e nunca admite solidão. Nela, estamos todos bem protegidos, aguardando a promessa. Nela, nunca temos culpa de nada. Os outros é que são maus. O problema  é sempre deles.



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