Saio de casa mais tarde do que gostaria, conto os minutos no relógio de pulso emprestado, como se lutar contra eles salvasse-me a vida. Para cada quilômetro uma meta a ser batida: hoje só quero ir mais rápido do que ontem. Esqueço o frio, mal ouço a música, coleciono semáforos vermelhos e só dialogo com as setas dos automóveis, a pedrinha no tênis fura a meia, fere o pé, mas só vou perceber quando já estiver no chuveiro. Eu não tenho medo, não tenho medida, passo mais rápido do que qualquer ponteiro, durante cinquenta e sete minutos, eu engano o tempo. Os segundos são mais lentos que os meus passos, eles até tentam, mas não me acompanham.
Na chegada para o derradeiro quilômetro, uma frase no para-choques de um caminhão me desestabiliza, leio: "O passado não passou". Minha visão tem me enganado um pouco, especialmente se a distância é longa e a caligrafia do artista é muito desenhada. Não tenho certeza do que está escrito, mas estou segura do que eu leio. O passado não passou...o passado...
Muito pouco do que vivemos está mesmo inscrito neste tempo de agora. Cada passo sentenciado hoje foi-me dado ontem, não sou resultado de nenhum outro tempo se não do passado. O corpo tem memória, dizem. Há dois dias que voltei a correr e mesmo que eu me canse muito e queira desistir são os meus pés que me levam mais a frente, são eles que me lembram do caminho e ritmo, cativa, só obedeço. Não me perco, mesmo que quisesse, o corpo comanda: direita, corra mais um pouco, agora é descida, segure o ritmo, desça a calçada, espere o sinal, siga em frente, mais forte, inspire, solte o ar. Não sou eu quem falo é a outra que aprendeu o caminho e, experiente, é quem me guia agora. Mesmo que escolhesse ignorá-la sua voz não calaria, ela diria: levante-se e eu continuaria deitada, mas só a escolha em não obedecê-la é que seria minha. O passado não passou. É ele quem insiste com os meus pés.
A vida é esse constante exercício de lembrar e tentar esquecer. Na memória frequentemente requisitada buscamos no passado o que não somos capazes de compreender enquanto acontece: - Mas o que eu disse mesmo naquele dia? Que palavras usei? Como começamos? Qual o lugar em que nos perdemos? Não sei, acabou. Não interessa mais.
E nesses dois passos para trás e um para frente, vamos seguindo submissos a um tempo que só é passível de entendimento quando não podemos mais voltar atrás. Mas é a partir dele que os nossos passos aprendem os caminhos. Não mudamos o que passou, mas mudamos, a partir do que se passou, se não rejeitarmos a voz que vem de um outro tempo.
Chego em casa, alongo os músculos, quase automaticamente, lembrança dos tempos de balé, pego a toalha no varal e cheiro longamente suas tramas, sempre cheirei as roupas, toalhas, fronhas e lençóis, meu olfato é mais antigo do que eu, antes do banho me olho no espelho e tenho mais de trinta anos, sorrio com a constatação e volto a ter três. Do passado não desgrudamos nunca, no para-choques do caminhão a vida de todos nós está impressa: o passado não passou. Passamos nós, mas a voz de outros tempos não nos abandona. A noite está estrelada, antes de fechar as cortinas, olho para a luz que já não existe, mas que brilha sobre as minhas janelas.
A memória é a única tragédia que pode nos salvar de nós mesmos. Na fotografia da estante, lado a lado, uma menina de vestido azul, com o dedo na boca e uma jovem de cabelo chanel, vestida de beca são as únicas que conhecem os caminhos tortuosos ou venturosos que os meus pés já pisaram, no sorriso delas, compreendo: vai ficar tudo bem. Sobre um tempo que não sei, aprendo cada dia um pouco mais e mesmo quando acho que desconheço a voz de outro tempo sussurra para me ensinar, então deixo que ela fale.
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