quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Um bom dia para o esquecimento

 Andava longe ainda, os braços soltos pelo corpo, as pernas relaxadas de direção, os olhos sem uma perspectiva definida, olhava para cima quase sempre, isto é certo, os maxilares pareciam livres de tensão,  os lábios, que nunca tinha visto antes, vinham sinuosos e traziam a possibilidade de um sorriso. Os passos eram largos, com os sapatos muito firmes sobre o chão parecia pisar em cada certeza, nas dele, nas dos outros  e na daqueles que se prendem a uma mesma ideia durante muito tempo. Eram pés seguros de outra coisa que não certeza e, mesmo, que parecesse sem rumo não se curvava aos riscos de um trajeto repleto de possibilidades. Estar perdido é muito mais um estado de sentimento do que geografia; é ter mapa na mão, endereço e desenho do trajeto, GPS atualizado e bússola, mas tantas vezes, não saber se chegar é mesmo um desejo, se chegar é o fim esperado. Perder-se é duvidar de que o lugar determinado, na partida, é o certo agora. 

  Ele passava entre tantos outros da cidade, num tipo físico bastante comum, sem marcas, sem tatuagens aparentes, era todo marrom, mas  sem nunca parecer igual; ele era único no rumo que parecia desconhecer. Desviava de ambulantes, abria passagem para os mais inseguros e os seus passos ganhavam, a cada centímetro ultrapassado, uma parte a mais do meu coração. Eu que nunca sento na primeira fileira, para também observar o público, para assistir outros olhos atentos, ficava grata por poder observá-lo, eu que tenho dificuldade de foco e uma atenção cambiante, sentia-me privilegiada por acompanhar passos de sutileza, abastados de vida ordinária. Perdi-me ao encontrá-lo, esqueci das horas, da aposta no escuro, da saia roxo batata que ninguém nunca usou, da coragem desencontrada, do abrigo partido, do tempo que fazia, do suéter caído sobre o braço, da conta perdida no fundo da bolsa, cujo prazo de vencimento é inadiável. Esqueci do meu nome, do que fiz da vida, dos armários desarrumados, das escolas das quais nunca gostei, das ressacas de vinho ruim, dos horários na agenda que nunca trago comigo, do aniversário do amigo de longe, do livro que precisava comprar, do que precisava devolver, daquele que nunca li e minto que li, das estratégias criadas no final de semana para uma vida mais abundante de atenção. Esqueci que não me perderia hoje e me perdi no centro da cidade, acompanhando um homem sem rumo, que não estava perdido.

  Ele passa e esbarra no meu ombro, me pede desculpas e segue o seu descaminho-sina, parte levando uma fração de mim,  que rejeitava,  agora aceito e mais, sou grata. Um homem assim que nunca vi antes e que me fez esquecer do que não é urgente. Um homem cuja certeza não é o caminho, mas a esperança. Uma alma que não se enterra em certezas e linhas retas.

  Seguiu sua jornada  e num esforço desumano, levantou uma trouxa de lixo, instalado por um colega, minutos antes, no final da avenida e içou até o caminhão, depois flexionou os joelhos e numa impulsão única, já estava ladeado por outros homens no caminhão de lixo. O homem que recolhe o descartado é o homem mais bonito desta tarde. Ainda percorrerá meia cidade e não se encontrará naquilo que carrega, nem nos caminhos que é obrigado a circular, mas vai se ter consigo é no jeito que caminha. Um moço leve de alma  e abarrotado de liberdade de olhar. Vai correr atrás do caminhão algumas vezes, vai deixar o saco preto do descarte se abrir, outras tantas, vai sentir o odor rejeitado, vai embalar o que ninguém mais quer, mas vai ver além. E de olhar para ele, de vê-lo tão incompleto, mas não perdido, minha vida se acalmou nela mesma, meu instante tornou-se pleno. Passaria a vida a vê-lo, se pudesse, se nossas vidas de repente se instalassem uma de frente para a outra, se eu continuasse a permanecer nele.

  O trem perdido já não assusta a paz. A pomba branca repousa calma no coração agora. No caminho que assisto, encontro sossego e esquecimento em frente ao caminhão de lixo. Esquecer é um jeito de aprender, se não novos caminhos, um jeito novo de passar por eles. Sobe o caminhão na ladeira íngreme da cidade e me deixa na rua, abandonada de certeza, mas repleta de compreensão. Na quinta-feira, no meio de um dia caótico de afazeres, um desconhecido me lembrou que esquecer também é restaurador. 



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