quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Do lado de dentro da calçada

  Sete da manhã e homem no final da rua ajeitando os restos da mudança de alguém, escolhendo o que serviria para ele e o que continuaria na calçada para outra seleção minuciosa ou iria para o caminhão da limpeza urbana. É um homem bastante jovem, carrega uma sacola e avalia cada objeto abandonado com a perícia  de um profissional experiente. Pensa no que vale a pena reaproveitar, no que já está muito degradado e até naquilo que poderá carregar sem ajuda. Entre sofás, colchões, xícaras sem par, luminária, seus olhos decretam futuro ou descarte; cabe a ele sozinho a tomada de decisão, o juízo final dos restos da vida de alguém. Passo por ele, ensaio um cumprimento, mas ele está obcecado pelos artigos, nem me vê,  os olhos grudados na prateleira imaginária de um mercado sob o sol brilhante.

  Sigo o itinerário acostumado, mas levo um pouco do jovem homem comigo: seu desejo de consumo se realizando às 7 da manhã, as escolhas que poderia fazer, as possibilidades que as ruas oferecem, pois,  possivelmente, ele saia de casa todos os dias com a imprevisibilidade do que irá trazer consigo. E, penso na capacidade que temos de validar ou descartar algo, porque o tempo requisita, porque os espaços modificam. O sofá pago a longas prestações agora é analisado pelo homem, um porta-retratos é colocado na sacola, algumas pastas são abertas, segredos talvez sejam violados, tudo isto pelas mãos solitárias de um rapaz que conhece as memórias abandonadas de uma cidade, que talvez nem o reconheça.

  A música dos meus fones para e eu escuto o homem na rua deslizar as mãos por objetos que talvez, um dia,  fossem muito importantes para o dono, mas que agora é lixo, descarte, está sujeito a profanação de outro alguém qualquer. A importância de algo é mesmo cambiante; nada dura o tempo de um olhar já cansado, sedento de novidade e frescor. Há uma incapacidade persistente em olharmos para uma coisa e não vermos só a coisa, mas revisitarmos os sentimentos que nos fizeram amá-la. Alguém perde suas memórias e um homem de boné as resgata, a seu jeito, sob a sua ótica.

  Durante a corrida, avisto o homem vindo com as suas escolhas, na avenida cheia de cinza e carros, ele segue em sentido contrário ao fluxo e, pelo acostamento, empurra um carrinho de plástico colorido, com uma boneca sem um dos braços. A sacola não está tão cheia, mas tem sorriso e presente para uma filha talvez. Passo por ele e vejo a delicadeza com a qual ele segura o carrinho e a fantasia de uma filha, talvez já traga no brinquedo aquela outra que o aguarda em casa.

  O valor das coisas é mesmo muito fluido e variado: hoje é, amanhã não mais. Mas a sua direção quase sempre aponta para um simplicidade inexplicável,  num objeto de segunda mão, abandonado na rua; num regalo singelo bem intencionado; num gesto, palavra ou acolhimento inesperados. Ou, como quando meu pai e eu caminhávamos pela rua e ele passava a mão sobre os meus ombros e me puxava para o lado de dentro da calçada; a cena é prosaica, costumeira, mas era o amor maior do mundo e eu já sabia disso. O jovem rapaz me devolveu a cena antiga e repetida dezenas de vezes. Trazer para perto de si o que se ama, proteger e revisitar o sentimento primeiro é que dá o real valor ao que não poderemos nunca abandonar na calçada.



Um comentário:

Anônimo disse...

<3
besas