segunda-feira, 25 de abril de 2016

No envelope pardo deles um universo como meu

   Por vezes o que achamos ser estritamente nosso, particular e completamente individual, de repente, ganha companhia, olhamos mais um pouco e mais outra chega, depois outra e outra. E então, descobrimos que o universo da nossa individualidade é permanentemente perpassado por dezenas de outras vidas e cada uma delas parece estar intimamente ligada à nossa; não importa se é uma vida com a qual nunca tenhamos nos deparado antes, não importa se é um estranho. Se é, deixa de sê-lo no momento exato que vislumbramos nossa conexão. E dá medo, muito medo  - mais do que coragem pela companhia, juro - quando percebemos que o estranho depende de nós, assim como nossa vida passa a ser dependente da dele; e se ele nos abandona, de repente, ou se eu preciso ir embora? Como não olhar para uma vida tão estreita à sua? Já não estamos sós, somos esse emaranhado de confusões, de afetos, de histórias, de traumas e de esperanças pessoais, dividindo um mesmo estado, uma mesma experiência. Não falo de místico, nem de um deus de religião, mas num vínculo muito bem amarrado, que devolve-nos a nossa parte perdida, que nem sabíamos ter, ou nos retira uma que nunca nos fará falta alguma, para preencher um outro. E talvez essa vida só esbarre com a nossa por alguns minutos, mas a partir dela e por ela assumimos o compromisso de não voltarmos a nossa pequenez anterior, é preciso ser maior agora, abrigar em nós esse desconhecido tão nosso igual.

  Eu não tenho um envelope, é a minha primeira consulta. Alguns minutos de espera eu já fazia essa especulação.  E outra: os de envelope nas mãos pareciam muito mais ansiosos dos que os sem envelope. A maioria dos envelopes eram bastante grandes e de cor parda, de uma clínica de exames, pela qual, possivelmente também passarei depois da consulta. Não tenho medo, como já disse é a minha primeira consulta, mas não é um lugar de serenidade, definitivamente não é. Diferente de outras salas de espera de médicos, nesta, poucos falam e quando o fazem são discretos, sucintos e, desconfio, demasiado respeitosos. É um lugar onde a gravidade parece sempre muito próxima ao interfone. A sala é grande, está bem cheia, divido meus olhares com muitos, mas acabo fixando os olhos nos bancos próximos aos banheiros. Em um homem adulto, que eu diria velho, há alguns anos, mas hoje chamo só adulto, porque tem no máximo uma década a mais que eu e uma menina, que daqui a pouco descubro ser filha, ter onze anos e adorar Jennifer Lawrence.

  Só o pai tem o envelope pardo, é dele a responsabilidade de guardá-lo consigo, mas ela tenta também dividir a missão; o amor tem dessas coisas, da gente querer aliviar o peso do outro, mesmo que nem tenhamos condições de fazê-lo bem. Ela o deixa cair em minutos, toda vez que pega, na quarta vez ele se irrita, toma o envelope com rispidez e chama a atenção da menina que era alegre e agora parece emburrada.  Começo a pensar em quem traz quem ao consultório, de quem será o envelope? O médico pelo qual todos esperam trata de uma diversidade de gentes, idades e tipos, não é fácil precisar ali quem é o paciente e quem só acompanha. A menina e o pai estão neste caso de dificuldade: um envelope para os dois.

- Deve ser ela. Meu primeiro pensamento fala alto. Porque, se fosse ele, teria  outro  adulto o acompanhando, não traria uma criança para uma situação que requisita apoio, serenidade e coragem. Por outro lado, se for ela, cadê a mãe? Nestes casos de saúde eu também sempre preferi o meu pai. Ir com ele ao médico sempre parecia mais leve, menos grave, porque ele era quase negligente, não perguntava a cada minuto se eu estava bem, nem buscava água, nem reclamava com as atendentes qualquer atraso; meu pai nunca achou que eu fosse morrer. Minha mãe achava todos os dias, por isso era difícil escapar dela nas consultas aos médicos.

  O pai e a menina brigam de novo, ela queria ir lavar as mãos pela terceira ou quarta vez e ele não deixou ela se levantar. Ela sentou no lado oposto, cruzou os braços e não olha mais para ele. O homem também não se esforça por uma reconciliação, pega uma revista e parece se distrair com a leitura.

   Mas e se for mesmo a menina? Sinto o nó do choro alcançando minha garganta pela primeira vez. Não pode ser ela, não é ela. Seria muito injusto um envelope pardo para uma menina tão colorida. Mas, é possível também que no envelope não tenha nada de grave; muitos saem da sala bem sorridentes, dobram seus exames de qualquer jeito, colocam-nos na bolsa e seguem livres, leves, saudáveis.

  De repente, a menina corre e abraça o pai, deita no peito dele, como se lembrasse do amor e ele fosse urgente. Ele larga a revista e abraça muito forte sua cabeça de cabelos bagunçados pela falta de jeito dele. E eu me lembro de todas as vezes em que a lembrança de um amor me devolveu a presença de alguém, todas as vezes que a certeza de amar me deu coragem para viver o sentimento sem medo, sem pressa, sem concessões e perdoar o que eu sabia passageiro.

  Eles entram na sala e eu não consigo saber quem acompanha quem, quem tem a vida futura ameaçada, mas não importa a quem pertença o envelope pardo. Ambos estão ameaçados agora, eles dividem o peso da brevidade da vida. O meu envelope eu ainda não trago. Mas na próxima visita queria ter uma filha ou um pai com quem pudesse dividir este peso de um envelope tão sisudo. Na sala do consultório três futuros que ultrapassam as portas de vidro jateado. O da menina, o do pai e o meu, pelo dois tenho temido bem mais. Eu tive a sorte de tê-los hoje, eles têm a sorte em ter um ao outro para sempre.



 

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