sábado, 23 de julho de 2016

O céu alaranjado entre o final da noite e a manhã

   Mais de mil noites sem sono, não há lado do travesseiro que o sonho escolha; deixa a cama bagunçada, levanta e vai fazer o chá para aquecer o gelo interno. O piso frio da cozinha é quase pior que o da barriga. Acende o fogo e aproveita para aquecer as mãos perto da chama. Olha pela janela e vê um escuro tão desolador, tão infinito, a solidão silenciosa no vão entre os prédios. Assim, a esta hora, no frio de menos de dez graus lá fora, podia achar até que morava num bairro abandonado, que todos já se foram e só ela, esquecida, aquecendo a água. Ajeita a erva desidratada no fundo da chaleira e coloca a água. Não queria chá, queria só sono, mas a gente sempre encontra um jeito de se consolar com o que tem, quando  falta aquilo que muito deseja.

  O chá em tempo de infusão, melhor ficar por aqui, porque quando for para cama, depois do chá quente, vai encontrar o sono que há muito escapou. Quem terá roubado o sono dela? A quem ela terá ofertado suas mil noites insones? Será uma perda voluntária ou uma oferta em sacrifício? O que mereceria uma devoção tão dolorosa,  ter noites inteiras despertas e manhãs que nascem diante de olhos resistentes e cansados?  Não dormir é uma pena árdua para qualquer que seja o crime, é estender os pensamentos de um dia para o outro, não possibilitar o refresco dos intervalos; sem o sono a alma não areja. Coa o chá, a caneca aquece as mãos, o vão continua escuro, vazio e frio. Nada entre a janela da cozinha do seu apartamento e a do vizinho; deserto gelado. Enquanto toma o chá, escuta o próprio suspiro, só os seus próprios sons desafiam o silêncio.

  Olha para o abismo escuro e gelado da janela  e lembra que ainda está resistindo a avalanche, as sucessivas tempestades de consciência. Mal sai ilesa de uma e chega a outra, querendo derrubá-la, afastá-la do que ela não tem nem sabe o que é,  mas se aproximava de conhecer. Deixando-a mais forte, depois de testar a fundo toda sua vulnerabilidade, esfolar sua sensibilidade inteira, deixá-la  em carne viva, temperada com sal.  Seguindo o caminho do cume, sem pensar no que virá depois dali, andando cautelosamente pelos caminhos mais tortuosos, atravessando com atrevimento as pontes inseguras, lançando-se na brancura da neve e na escuridão da noite. O queixo se acostumou às batidas, os maxilares já rígidos, de gelo e medo. Um dente parece mole, mas finca-se à ideia de ter outros vinte e sete, talvez 28, porque da última vez que fez radiografia viu um siso que poderia apontar ou não. Se cair este, terá vinte e sete e meio e parece um bom número. Razão de não se preocupar mais com um dente. Ontem mesmo viu dois homens escaparem da morte, um terceiro não resistiu e abandonaram o seu corpo debaixo de uma árvore, acho que não tinha, há tempos, bons pulmões para suportar os  longos fôlegos que o caminho arranca. E nela só um dente parece avariado. Tem um corpo cansado, mas cheio de boa sorte.

  Viram-na só e ofereceram ajuda e companhia, mas ela não é de confiar, muito menos aceitar a ajuda de desconhecidos que abandonam um companheiro como se fosse um cantil sem água. No mais, subir montanhas em grupos de número ímpar dizem não ser auspicioso. E, na montanha, acredita-se em tudo: deuses, mapas geográficos de relevos, combinações astrais, má e boa sorte, meias ao contrário, gravetos em forma de cruz, protegendo os acampamentos, número certo de exploradores, combinações de nacionalidades. Ela agradece a oferta, toma alguma distância e depois de estar segura, cercada da sua solidão, para num plano mais elevado e descansa o quanto pode, sem dormir. Acha que nunca mais terá  sono tranquilo na vida, não depois de tudo o que tem vivido aqui. Os olhos chegam quase a se fecharem, mas resistem. Se levanta e vai vencer mais alguns metros.

  A distância da montanha varia conforme o seu estado de espírito, agora, por exemplo, enquanto escreve e contempla o céu da noite que já quase dá espaço para a manhã, parece que a montanha se aproxima, mas se está irritada com o breu da noite, com muito medo dos uivos de um animal  ou uma tempestade sem a proteção de uma barraca, ameaça um choro e acha que vai desistir de tão longe, a montanha. Às vezes, no caminho, chegamos num estado de perder as nossas próprias mãos, de frio, de esquecimento, de falta de sono na hora certa.  Chamamos no vazio e não ouvirmos resposta, só a repetição da nossa própria voz no eco. Esquece o sentimento, só vê a distância parecer infinita.

 Mas então, a barriga de repente aquece, o piso frio da cozinha é abandonado. Os pés alcançam a madeira do corredor. Vai para a cama desarrumada, ajeita o lençol, faz uma oração para os abandonados pelo caminho, pensa na altura que os homens devem estar agora, puxa um pouco a cortina e o céu alaranjado aponta sobre a cama.  Andava completamente só quando encontrou os dois homens e, mesmo assim, não foi com eles. Vai voltar ao caminho  sem medo, sozinha, porque as pernas sempre foram dela.

  Mas, hoje pela manhã, vai abandonar o  cansaço de mil noites e dormir o quanto o frio da montanha permitir. Espalha a tempestade de consciência, ela não vai precipitar hoje. O chá da madrugada aqueceu o estômago e deu força para continuar a subida. Mas esse céu alaranjado entre o final da noite e o começo de uma nova manhã vai ser para sempre o retrato mais persistente e bonito da sua vida, depois dele, dormir já não parece tão importante. A montanha é num mesmo rosário, pena e regalo, basta passar para um outra conta e a oração se transforma: agradecimento e pedido; pedido e agradecimento; choro seco e risada com lágrima. Em um segundo, a imagem da janela muda e a distância do cume parece completamente outra.




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