sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Entre as lágrimas delas e as minhas mãos vazias

   A primeira eu conheço há pouco, rosto duro, atitude orgulhosa, quando eu a vejo entrar pelo corredor eu sei que ela não tem dúvidas, tem os passos acertados, não anda muito lentamente, mas também não tem pressa, é uma convicção inata - pode até nunca saber, mas sempre vai parecer que sabe -  segue direto para o lugar que escolheram para ela. É tão pequena e já tem aquele jeito de soerguer a sobrancelha direita quando alguém fala com ela. E eu falo muito, não ao ponto de incomodá-la, mas para que ela saiba que  a certeza dela não me afasta. Foram meses assistindo a esta mesma entrada, alguns dias ela pareceu mais próxima, noutros parecia não fazer questão de me conhecer. Não compartilhamos muito mais do que esta entrada, vejo-a bem pouco, mas a imagem dela é sempre presente. Ela não tem mais do que dois anos e me parece inspiradora.

   Na semana passada ela atravessou o corredor do mesmo jeito, a certeza era companhia, veio para o mesmo lugar de sempre, sem dúvidas, sem procrastinação, sem pedir um outro lugar no mundo ou simular um esquecimento. Veio definitiva, admirável flecha, memória atenta, mas os olhos eram outros, não tinham a secura do orgulho, nem o arco da soberba. Era uma solitária, como das outras vezes, mas muito mais vulnerável, cheguei delicada, abaixei-me e vi seus olhos numa tristeza tão profunda, que eu quase não consegui me levantar mais. Ofereci um abraço, ela não me respondeu, só continuou me olhando com aqueles dois profundos e misteriosos rios, peguei-a no colo, ela se ajeitou no meu peito e transbordou. Eu com a menininha que nunca pareceu gostar de mim, não de maneira especial, no meio do pátio, abraçando-a, acolhendo-a, unidas por uma tristeza tão dela, tão cheia de atitude e certeza; uma tristeza que se sabe triste. Eu consolando-a de algo que desconheço, eu tentando protegê-la dessa vulnerabilidade de estar no mundo, eu tentando tirá-la da loucura do sentir muito profundo.

  Nós duas no meio do pátio, ela desabrigada de tudo e eu segurando-a enquanto podia. Ninguém perguntou sobre o abraço que não acabava, passamos a manhã inteira entrelaçadas, sem palavra alguma - porque às vezes confundimos mais quando damos nomes - ficamos  até  os dois rios dela não terem mais água para fora dos seus limites. Quis ser o escudo e protegê-la das balas, até que parassem de  chover nas suas costas. Deixei-a dormindo de cansaço e choro, mas não pude deixar de senti-la dolorida no meu peito. Nos outros dias, não teve tanto choro, mas no meu colo ela ainda tem se abrigado. Tenho medo que algo tenha se quebrado dentro dela, ela tão pequena, tão preciosa, já com esses olhos de dor irreversível.

  Os outros têm o seu histórico médico, familiar, eles repassam e refazem as avaliações de toda a sorte, mas eu tenho os seus olhos e essa tristeza dela que tanto me desafia. Que não me afasta, pelo contrário, mas sinto que é injusta, precoce e percebo aterradora. O choro do outro é ainda uma tristeza maior que a nossa própria, porque nos coloca na impossibilidade de encontrar o lugar dela, um meio ou saída. Tenho-a, o quanto posso, no meu colo, mas não parece ser o suficiente. Queria saber o que fazer com o que se partiu nela, queria ter as mesmas certezas, como ela quando atravessava o corredor e ia exata para o seu lugar.

  A outra é das minhas ligações mais profundas com a vida, um amor antigo sem marcas possíveis no calendário, foi sendo, só. É o que sei e como conheço o mundo, porque ela já estava aqui quando eu cheguei e mesmo que eu discorde tantas vezes de tudo que ela me diz, foi sempre quem me apontou para cada coisa. É ela a minha dor e apaziguamento. Meu abrigo num mundo em guerra e a minha trincheira bombardeada, quando eu tento descansar. Nunca é só uma coisa. Mas nos últimos tempos ela tem os mesmos olhos da menininha, que eu abrigo no peito. Chora de repente,  diz palavras muito obscuras e não se comove com as minhas súplicas de reação.

  Tentei a mesma aproximação delicada, oferecendo o que podia e evitando perguntas, ampliando os espaços para a tristeza dela espairecer, respirar sem pressão e um dia ir embora. Mas meu plano parece demasiado lento, muito perdido de objetivos. Tenho medo que a tristeza dela esteja durando demais, tenho medo de deixá-la muito acostumada à falta de alegria, tenho medo de não saber a hora de intervir com mais dureza. Tenho medo de não ser essencial na sua tropa.

  Agora, quando vejo a tristeza de uma, lembro-me imediatamente da outra. Carrego as lágrimas de uma na bolsa surrada e o medo pela outra na manga do casaco. Sei sorrir como antes, continuo dançando em passos livres e deitando na grama, quando encontro alguma, mas se olho no espelho, vejo um pouco de cada uma em mim. E lembro que não posso coisa alguma por elas. Numa eu vejo a minha juventude me abandonando a cada dia, da outra só me aproximo mais em fios de cabelos que sutilmente embranquecem.  Queria poder aplacar essas dores, fazê-las esquecer das suas feridas, ser mais certa, mais autoritária e não essa tonta que segura uma no colo e leva chá com biscoitos para outra. As duas tristezas marcam meu próprio tempo, acho que por isso busco a redenção de ambas. Se salvar as duas mulheres, também eu estarei salva. Tenho essa existência cravada entre as lágrimas delas e o desejo de vê-las encontrar, depois do corredor, o lugar certo, a solidão independente e quase nada vulnerável.




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