segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Os maus dias, não deixem que eles escapem

   Não é um roteiro de filme, não tem como escolher as marcações. Pensa em abrir uma porta com toda suavidade e ela emperra,  cogita um pedaço de bolo na geladeira e alguém pensou antes, finalmente uma novidade chega e a primeira pessoa com quem compartilharia não está mais. A porta abre com dificuldade, não comerá o bolo e a novidade não tem partilha, suportará o peso da alegria solitária?

  Na TV os atletas sobem ao pódio, enquanto uma mulher na quinta fila levanta uma faixa: "Diego, saudades". A TV rapidamente corta, não querem mostrar as manifestações. Mas o Diego não me sai da cabeça, nem a mulher. Procuro um Diego entre os jogadores da partida, pergunto para quem entende, e não há nenhum, penso na comissão técnica, no juiz, nos voluntários, quem será Diego? Porque tem saudades dele, a mulher? Porque neste jogo, ela levanta uma faixa? Não, o Diego não pode estar ali, porque não haveria faixa, o Diego está em casa ou o Diego não está mais. Será mesmo que li isto? Ninguém mais viu. Sou a única, na sala, testemunha da mulher de meia idade. Só nós sabemos de Diego e eu tão pouco: que uma mulher sente saudades dele.

  Depois do pódio, ainda espero rever a faixa, mas nada mais aparece, só outras frases, de outras pessoas, que não me despertam o interesse. Desligo a TV, termino o chá e a faixa me angustia. Será que as saudades de Diego terão fim? Diego andará perdido por decisão ou destino? Que tipo de relação existe entre a mulher e Diego? Durmo mal, porque não esqueço. Amanhã acordarei cedo e vou para a rua: andar, correr, ver a cidade, tentar não pensar em Diego.

  Tinha uma cidade me esperando, tinha um corpo que queria recomeçar a ganhar os espaços, que ajudou a construir. Afinal, uma cidade não é um projeto de alguém, tampouco a construção erguida  dia após dia, não é o  prédio histórico, nem o nome célebre impresso na placa da rua. As cidades são os seus mendigos instalados onde podem, nos lugares que ainda não pertencem a ninguém ou ocupados na clandestinidade, são suas buzinas às oito da manhã e às seis da tarde, são os outros corpos que transitam ora cordiais ora urgentes. Uma cidade é o cheiro dela e mesmo que você permaneça longe por muito tempo, basta passar uma lembrança qualquer, ouvir falar seu nome ou ler em algum lugar e o cheiro, misteriosamente, desperta o olfato. Uma cidade é aquilo do que não gostamos nela, que passamos uma vida a reclamar, porque as queixas compartilhadas também fazem uma cidade, mas também são as especificidades afetivas, o homem do amendoim com chocolate e do coco com açúcar, a carrocinha de pipoca, o palhaço com a anedota repetida, a mulher do crochê em frente ao teatro. Uma cidade é o que imaginamos dela, mais do que se materializa. Uma cidade é o recorte que nossos olhos são capazes de definir diariamente; fotografias que se movimentam, ganham ângulos de esperança ou medo.

  Uma cidade é a atendente do supermercado impaciente com a senhora que não encontra a moeda que facilitaria o troco, uma cidade é o homem, o próximo da fila, a oferecer ajuda e encontrar a moeda, é a senhora a esperá-lo no final do caixa com um chocolate como agradecimento. A cidade é a amizade recém começada entre dois desconhecidos que, agora,  sobem a rua juntos. A cidade é múltipla; bonita e miserável, acolhedora e hostil, não há lado escolhido ou descartado; ter uma cidade é tê-la na sua confusão.
  O despertador, com a música do filme favorito, toca, levanto e abro a janela, a rua molhada e ainda chove. Era hoje o dia de ganhar o que por pouco não foi perdido. É como numa convalescença muito demorada, o doente quer a cura para fazer as coisas de sempre, mas com o gosto da quase perda, isso dá outro sabor. Só queria a rua agora.

Coloco o tênis, talvez me arrisque. O céu é cinza chumbo, mas a chuva é branda. 

  Saio à chuva, caminho devagar, escorrego algumas vezes e choro por quem não tem a opção da chuva hoje. Os dias não são nossos, os planos são só traçados de sonhos no papel, a vida tem essa autonomia desesperadora de mar em fúria, que leva o mais habilidoso nadador para correntes que ele jamais poderia prever. Os maus dias também precisam ser tragados em altas doses, sem limites. Eu hoje acordei e quis que o dia mau me pertencesse. Eu, hoje, não esperei pelo amanhã. Subi na onda e não calculei onde gostaria que ela me deixasse, porque, no fim, é  ela  quem sempre me leva.

   Saudades, Diego. Saudades. Eu acho que ele não volta, que a saudade dela, inscrita na faixa é só um desabafo cortante, um jeito de tentar ter um pouco mais do Diego. Ele gostava desse esporte, era ele quem viria, mas é ela quem escolhe honrar o que sobrou dos dois. No sábado à tarde, na cômoda do Diego, ela encontrou os ingressos, vestiu uma camisa amarela, fez o cartaz e foi chorar por ele lá. É um dia ruim, sem dúvida, mas ela não deixou que ele lhe escapasse. Nada mais pode afastá-la da sua fome. Tem saudades e grita, quer viver e sai. Não quer mais cama, porque curada, sabe que nunca vai estar completamente. Então sai pela cidade que foi do Diego e hoje é só dela. Vai ocupar uma cidade, mesmo carregando sua mais profunda ausência.



3 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais. 25 de agosto de 2016
Prezada senhora dona escritora muito talentosa
Amanda machado

Acredito que Frida jamais exporia assim seu desejo para com Diego que partiu após a relação intima e pessoal que teve com Trotsky, então esta mulher não tem o perfil Fridal (Fridálico? Frinético?).

A ausência é uma dor que não passa, é movimento na terceira margem, segundo Guimarães Rosa (mineiro dos bons), na completa solidão.

No mais, sempre bom vir aqui!

Um abraço

Paulo

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 26 de agosto de 2016

Querido Paulo, leitor sempre surpreendente,
definitivamente a mulher não me parece ter o perfil Fridalesco (?)...não mesmo. Agora, como explicar um quase Trotsky (porque o daqui é Trótski)logo abaixo de um Diego? Não sei. Não se explica.

Estou certa de que muito poucos ou ninguém, além de você, se atentaria a isto. Em todo caso, é sempre uma maravilha quando vem aqui!

Abraços,
Amanda

Paulo Abreu disse...

Gostei do Fridalesco. Ficou enfático.