terça-feira, 27 de setembro de 2016

Porque me escolheu

   Li os textos, frequentei as aulas, fui aos seminários, palestras, pesquisei, andei pelos caminhos dos outros, fiz alguns meus, subi e desci escarpas, às vezes perdia algo, noutras trazia coisas encontradas. Não tem sido fácil, mas é viagem da qual já não sei escapar. Desisto de algumas trilhas, mudo a rota e me embrenho noutras matas. Não sei de fim e o começo há muito ficou para trás. Mas quanto maior a distância percorrida, menos sei, quanto mais conheço, menos tenho certeza, aliás foi ela a primeira a me abandonar; peso demais na bagagem, desceu na correnteza do primeiro rio que avistou.
Quando o vejo no pátio, solitário, sem pares, com o sorriso recolhido, sigo como flecha que persegue o alvo iluminado. Conheci-o a pouco, mas parece que dele já não me perco. Levo as coisas todas que recolhi na estrada, tentando oferecer ajuda, proteção ou companhia, só.

   Ele olha para o chão, faz círculos com pé na areia, como se encontrasse no gesto um sentido no mundo. Todos ao redor fazem isto agora. Seus amigos jogam bola, correm pelo pátio, batem uns nos outros, cantam, conversam e ele faz círculos na areia. Só levanta os olhos quando eu chego e peço para me sentar com ele. Ele não me responde, mas chega para o lado, abrindo espaço, indicando que deseja que eu fique. Ele continua com os desenhos no chão e eu acompanho. Completando, fazendo novos, enterrando as minhas sapatilhas na areia e voltando com pedrinhas que só mais tarde, quando chegar em casa, eu vou perceber que as trouxe. E cada uma delas  me fará lembrar desta tarde de imagens no chão. Os movimentos ficam mais lentos, até ele parar e olhar para mim. Eu o acompanho, interrompo nossos desenhos e nos olhamos por alguns segundos em completo silêncio nosso e balbúrdia dos outros.

    Antes de escapar da quietude completa, ele aperta os lábios, esforço que empurra cada palavra, que sai com precisão, mas sob uma pressão que ele mesmo se inflige. Os olhos de um marrom que nenhum dos seus lápis poderiam imitar num desenho, os cílios grandes, as pálpebras que parecem apertar os olhos puxados dele. Foi a primeira vez que o vi com tantos detalhes. Os olhos são molhados e estão tristes, eu já mergulhava neles, quando ele finalmente lançou a pergunta:
- Por que ninguém nunca me escolhe? Por que não querem brincar comigo?

  Ele tem perguntas, eu deveria ter alguma resposta. Os caminhos, as leituras, as experiências deveriam apontar para alguma certeza, eu achava. Mas ele pergunta e eu não sei o que dizer. Se uso fábula, uma mentira bonita, se faço como os outros e só mudo de assunto. Já é bastante difícil entender as escolhas sem reciprocidade conosco, mas com ele, a explicação parece ainda mais distante e impossível. Logo ele, com os olhos tão bonitos, a docilidade, o casaco que ele sempre deixa cair e volta correndo para buscar, logo ele cuja habilidade com as peças de montar sempre surpreende e a disponibilidade de construir para cada colega o sonho que ainda não sabem como levantar: faz carros, casas, piscinas, cavalos, mulheres altas. Constrói cidades e as compartilha. Logo ele que não sabe dizer não, fica atado a um banco no recreio, porque as peças de montar estão guardadas.

   Ele é lindo, seu nome estrangeiro foi o primeiro que aprendi, quando cheguei. Ele colore o mundo de verde, eu pergunto o porquê ele diz:
- Gosto de mato!
  Diz que quando crescer vai ser mecânico igual ao pai, conta que tem um cavalo que se chama Guerreiro e desenha coroas e castelos para mim. Ele pergunta se eu gosto e eu não sei dizer que não muito, porque é dele para mim; e neste caso, isso é o bastante. Hoje ele veio de chinelo, machucou o pé, está enfaixado. Sugeriu que fosse isso. Talvez não o escolhessem porque estava de chinelo. Apontou o machucado e achou que isso talvez atrapalhasse a corrida.
- Pode ser isso, né?
  Não. Porque semana passada ele não tinha ferimento e não o escolheram. A semana toda ele foi de tênis e ficou no banco por vários recreios seguidos.

  Não sei o porquê. Não sei o que fazem as pessoas escolherem alguém e se esquecerem de outro. Não sei o porquê da espera no banco, do recreio tantas vezes mudo, com os olhos na areia. Gostam dele, não o rejeitam, conversam, brincam, mas com duplas ele ainda não se acertou. Nunca o escolhem.
Não sei quantas vezes essa pergunta pousará sobre a sua cabeça. Não sei precisar quantas vezes, numa vida, uma pessoa passa o recreio sentado porque não o escolhem. Talvez centenas, milhares? Alguns menos, outros mais.  Mas a medida que nos afastamos da partida, numa viagem, entendemos melhor a imprecisão da vida e nos importamos menos com as respostas.

   Me deu uma bala, agarrou o meu braço e ficamos no pátio, apartados da escolha, isolados da admiração dos olhos alheios. Passo as mãos nos seus cabelos cortados bem curtos, os tocos de cabelo dele  fazem cócegas nos meus dedos. Eu queria ser capaz de poder respondê-lo e queria que a resposta também não o magoasse. Eram mais de duas, o recreio já acabava e voltamos os dois de mãos dadas para a sala. Talvez, sem saber, nos tornamos a escolha um do outro. Improváveis,  mas bem felizes. No dia depois de me desestabilizar com a pergunta, que eu não soube de resposta, me levou uma carta, no envelope o destinatário: "para minha melhor amiga" e o meu nome em vermelho e letras grandes. Dentro, um desenho de uma mulher azul, com um coração laranja que tomava toda a página. Não usou o lápis verde.  Ele me escolheu. E eu volto dessa subida com uma carta e a escolha dele. Porque hoje ele me escolheu.





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