quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Se eu não me atrapalahr, não sou eu

   Devo ir ao rio, mergulhar o balde para trazer água, devo enterrar as sementes em solo fofo, devo descascar as batatas, cortar as cebolas, abrir o vinho, devo guardar o peixe que trouxeram do mercado e ser sincera com o locatário. Uma coisa atrás da outra, gestos encadeados. Se eu perder um só, me atrasar ou esquecer a ordem das coisas, posso não saber da próxima ou nem ter certeza que a anterior foi terminada. Se, por acaso, alguém me vê, sou quem vai ao rio, busca água, semeia, descasca batatas, corta as cebolas, serve o vinho, guarda o peixe e não mente.  

  Posso saber sobre tudo o que você leu, ler os mesmos títulos, autores, encomendar nos mesmos sites e pagar o mesmo valor por cada livro e ainda assim, não saber nada sobre como você leu. Mas se num dia eu acho algum livro no sebo ou na biblioteca e vejo uma única página com as marcações de algum leitor desconhecido, se eu identifico uma mancha de café, chá ou vinho, eu sei mais sobre ele do que de você. O parágrafo circulado, a seta em cima da palavra, uma pequena anotação numa das margens, o que ele bebe enquanto passa as páginas e eu sei como ele leu. Não tem nome, um rosto, nem as mãos eu sei como são, nenhuma ideia sobre o que fez do seu dia, mas eu sei o que leu.

  Posso ir ao mesmo clube, dar as mesmas voltas na piscina e ouvir os gritos do professor impaciente, que eu sei que você também ouve, usar a touca da mesma cor e marca, posso pagar a mensalidade no mesmo dia em que você sempre paga. Podemos cruzar os olhares, enquanto eu chego e você vai embora,  sua bolsa pode esbarrar na minha perna, podemos pisar na poça do corredor antes de irmos para os vestiários e teremos algumas horas na semana, em comum. Mas se ao mergulhar você não sentir a água ocupar seu cérebro, gelar seu sangue e fazer nascer um campo de dentes-de-leão nos seus pulmões, nunca teremos compartilhado da mesma água.

  Posso vê-la puxando a filha pela avenida, a menina pulando as riscas no piso, demorando com alguma coisa que encontrou no chão, fazendo uns passinhos de dança, largando a mão da mãe e correndo para o lado contrário, posso ouvir a mulher gritá-la, se aborrecer com ela, segurá-la  com força e esbravejar. Posso ver a menina chorando pelo caminho e a mãe com pressa, posso gostar muito mais das descobertas da filha do que da experiência da mãe. Posso achar que sair de casa com um itinerário inflexível, usar a rua só como passagem e atropelar o tempo de uma menina tão pequena é dolorido e antipático, mas é uma impressão vaga, porque não pertenço a esta linhagem. Foi a mãe quem passou duas noites da última semana, vigiando o sono da filha com febre, foi ela quem levantou de madrugada para levar a menina ao banheiro, durante três meses inteiros, quando ela deixou de usar fraldas, é ela quem arruma a lancheira da filha, quem compra bananas maduras e amassa com aveia, é quem se recusa a ir trabalhar no aniversário da pequena. Eu posso me identificar mais com a menina do que com a mãe, numa visão de viandante, mas não sei nada sobre ela desligar a TV para filha comer e depois, ligar para ela terminar duas colheradas, sobre ter que correr pela rua para deixar a menina na escola, trabalhar e na volta, ter que correr para buscá-la na hora certa, sem atrasos, para ela não ter medo de que a mãe não venha. Alguém espera a menina na porta da escola, a mãe a entrega e, antes, se abaixa e dá um beijo na menina. O que eu não sabia, agora sei.

  Posso conhecer todas as músicas que ela ouve, posso comprar CDs dos seus artistas favoritos e presenteá-la num dia qualquer, posso ter lido quase tudo que ela escreveu, ter escolhido sua roupa para as festas ou eventos importantes. Eu posso ter desenhado sua sobrancelha clara, ter marcado um horário no médico para ela, posso ter acobertado algumas das suas mentiras, posso eu ter acreditado em algumas delas. Posso ouvir os seus conselhos e não gostar, mas depois, segui-los secretamente, sem admitir. Posso ter oferecido minha mão, meu tempo, meus grampos de cabelo, depois, ter recomendado exaustivamente que tivesse cuidado e ela ter desperdiçado todos sem nem perceber. Posso tê-la visto várias vezes por dia e não ter suspeitado nunca sobre quem ela amaria.
  Posso estar num ônibus sentada ao lado de um homem, vê-lo se despedir de um outro, que não embarcou e ter certeza de que se amam, mesmo que eu nunca os tenha visto antes. Só pelos olhos de procura do que ficou  do outro lado do vidro e pelo pescoço que se vira, do que está ao meu lado, porque quer levar consigo toda possibilidade de imagem de quem ama. Nunca os vi; mas sei que há amor. 

  Posso ver suas fotos em todas as redes sociais, conhecer seus gostos publicados, suas dificuldades no uso dos conectivos, posso saber sua posição política e  gostar ou não dela. Posso saber da sua profissão, conhecer suas habilidades musicais, ter assistido a uma dezena de shows seus, posso saber quem são suas ex-namoradas e conhecer duas pessoalmente. Posso ter visto seus pratos preferidos, pedaços das suas viagens,  ter visto seus pais e ler suas homenagens nos aniversários  deles, posso ter visto uma foto da sua irmã de noiva e você emocionado. Mas se nunca chamou meu nome, nunca me pediu desculpas pelo atraso e nem me contou das suas frustrações e dos gostos ruins que teve que experimentar; sobre o que eu sei já não vale nada.  

  Vou cortar o rio, mergulhar com o peixe que trouxeram do mercado, vou  guardar o balde para trazer água,  vou descascar as sementes,  abrir a cebolas, vou enterrar o locatário em solo fofo e ser sincera com o vinho. Mesmo que as coisas pareçam não mudar, as cenas variam muito; olhos antigos  não são garantia de percepção. As certezas sempre estão  um passo a frente da nossa linha de chegada. Se me veem da janela de um carro,  por acaso,  sou a aquela que mergulha com um peixe, depois de desembrulhá-lo do jornal, que bebe muito vinho e que, por isso, é sincera. Não sou a sequência pretendida, erro cada vez mais. Se eu não me atrapalahr, não sou. Isto é tudo, mas quem viu já passou há muito por aqui.




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