quinta-feira, 27 de abril de 2017

Para não se afogar na melancolia

  Para não estragar o retrato, sorri sem vontade; sorri sem sentido, sorri na fração de segundo, enquanto o flash dispara. Registro do impossível: alegria pensada, estetizada, ensaiada e, finalmente, publicada. Chorar somente depois de apagarem as luzes e de todos já terem ido dormir. O lugar do choro? Escondido. O tempo do choro? No final de uma noite. O número de envolvidos? Somente dois - as lágrimas e os olhos.
  Para não despertar suspeitas, não se espantar,  não  sorrir ou falar sozinha, não decorar um poema com mais de três estrofes, não recitar um poema com mais de cinco estrofes, não escrever um poema. Mas se inevitável for, nunca mostrá-lo a ninguém e mesmo se o encontrarem, diz que não sabe de quem.
  Para não perder o emprego, não faça greve, não vá ao enterro da tia, não fique resfriado por mais de um dia, não engravide, não se canse ou se case num dia de trabalho, não se incomode com as piadas do chefe.

  Para não ouvir os gritos da vizinha e  não se indispor com o bom homem dela, fechar as janelas, cantarolar uma música, aumentar o volume da TV e lavar a louça concentrada sem se distrair; daqui a pouco tudo se acalma e todos dormem em paz. 
  Para parar de sangrar, um torniquete nos primeiros socorros, cicatrizar não precisa, as feridas abertas se acostumam com ar quando expostas.
  Para agradar todos os lados de um jogo, fazer concessões a cada rodada. Não ter gosto, planos, opiniões, sonhos, autoria, ser diferente da outra a cada mudança de interlocutor. Ter a bolsa sempre vazia e em cada bolso da camisa uma aposta diferente.

  Para desaguar no rio caudaloso, um dia, ter paciência e não desobedecer o itinerário obrigatório nas águas minguadas, desfilando calma de margem em margem ressequida. A abundância não é para agora, o encontro das águas é para um futuro, que a cada curva parece mais longe.
  Para encontrar o endereço e chegar sem atrasos, consultar aplicativos e mapas, não pedir informação às ruas, porque há demasiada ignorância nas esquinas.
 Para resolver uma equação, use somente a fórmula de Bhaskara, se não souber Bhaskara, nunca encontrará as raízes.
  Para não despentear o cabelo, dispensar passeios de moto, bicicleta ou em carros conversíveis; as janelas dos carros ou ônibus devem ser mantidas fechadas; viajar sempre protegida dos fenômenos climáticos.

   Para colar o sentimento quebrado, use cola-tudo, super-cola,  ou qualquer produto que prometa solução. Se ainda assim não consertar, esconder o sentimento e os seus pedaços num vaso de flor, para quando acharem:
- Não. Não vi nada. Nem tinha percebido a falta. 
  Para não desperdiçar o amor, contar cada nota, não doar as moedas; nunca gastar tudo numa loja só. Pesquisar, negociar e só levar depois da garantia estendida. 
  Para desejar sem perigo, consultar a lista dos desejos permitidos a você; nunca querer mais. Não desejar o que não está escrito, não querer mais do que já teve ou tem, há de se ter equilíbrio e medida. O grande irmão tem os olhos em você.

  Para aprender a nadar, basta controlar a respiração, sincronizar braços e pernas, seguir em linha reta e se afastar dos corais; nunca sair da sua rota, nunca relaxar o corpo e entregá-lo a qualquer onda.
  Para não sofrer de saudade, não se aproximar do coração, não criar expectativas, não dividir afinidades ou um sanduíche de queijo. Evitar se despedir, evitar gostar muito, evitar Neruda, evitar a bossa-nova e o jazz, os quadros de Picasso na fase azul.
  Para enxergar mais longe, óculos de grau ou lentes descartáveis, concentração e foco. Não se distrair no caminho ou fechar completamente os olhos quando for dormir.
  Para blindar a alma, colete à prova de emoções, livre dos riscos de enamorar-se e desmantelar-se numa mesma novela; resguardada de um mergulho suave no ar e queda nas pedras.  

  Para não sucumbir ao medo da injustiça, não fale dos perigos, não leia os jornais, não pense na finitude da vida ou das relações, espaços e tempos; não reflita sobre nada que não se possa tocar com as duas mãos.
  Para não se desesperar quando o sol não sair, não olhar para fora nem se acostumar a um céu azul ou à claridade no chão da sala. Escolher sempre o apartamento dos fundos e colocar nas paredes luzes e espelhos.
  Para não se desiludir com aquilo que está atrás da porta, nunca abri-la, não sonhar com o que poderá vir se virar a maçaneta, não romper com a promessa de não querer mais do que já tem na sala. E se baterem, fingir que a casa está vazia, não responder ao chamado

  E depois de preservar a beleza da imagem, as simpatias, a intimidade, o emprego, as boas relações, os sentimentos, ao entrar em casa, esperando no sofá da sala, estará ela, visita pronta e decidida a passar a noite.  O melhor  é tomar um banho morno e deixar que ela esfregue as suas costas, que preparem juntas uma massa na cozinha, enrolem bolinhos e que ela sirva um vinho em duas taças que você pegou no armário. Deixar que ela atenda ao interfone, que responda ao porteiro, que cante a parte da música que você já esqueceu.  Para não se entregar à melancolia, melhor é não afastar-se dela, não gritar que vá embora. Entregar-se uma noite inteira, dormirem abraçadas  e pela manhã, antes do café, só o lugar morno que ela deixou na cama. Foi embora depois de um delicado beijo na testa.
  Para não se afogar na melancolia, aprender a nadar nas suas águas, sem medo, sem rota, sem pressa. Pois é ela quem nos salvará da desumanidade. Se a melancolia estiver no sofá quando abrirmos a porta, no final do dia, é porque ainda há tempo, ainda há coração.




2 comentários:

Danielle Barbosa disse...

Ainda que devidamente advertida,inclusive pela própria vida,tenho por crença não me poupar.E então tb não me poupo ao encontro com ela,qdo chego em casa,bem ali casualmente a me esperar.

Amanda Machado disse...

Que linda! Sei bem que não é de se poupar, absolutamente...advertência não é limitação. A desobediência também é um caminho.