terça-feira, 23 de maio de 2017

Hóspede de uma vida inteira

   Já passa das dez, pedi para que não me buscassem, queria andar um pouco sozinha, me perder quem sabe. E, só mais tarde, pedir ajuda, parar um carro, uma pessoa que tivesse direção e então, encontrar o endereço deles. Mas vieram, porque já passa das dez e a cidade não tem a mesma hospitalidade da casa deles.
- Já passa das dez, que bom que chegou!
- Já passa dos dez, que bom que eu não me perdi.
  São mais de dez anos que sabemos uns dos outros, temos fotos, lugares, encontros, escolhas, danças, copos, desvios, adeuses, músicas, livros e perdas em comum. Eles têm os dois, eu não tenho nem a mim, mas eles me buscaram na rodoviária e virão sempre que o meu ônibus parar aqui. Um tem barba, agora, o outro tem o cabelo grisalho, eu também devo estar diferente, mas eles não falam; talvez nem notem, mas a minha mochila é a mesma de outras vindas. Já passa das dez, já passa dos dez e eu vou dormir na casa deles de novo.

  Poderia ficar num hotel aqui ou em outra cidade, não em qualquer hotel e qualquer cidade do mundo, mas em um hotel e cidade que o meu dinheiro pudesse pagar; eu poderia, poderia sim. Mas eu quis vir para cá, eu quis chegar depois das dez nessa rodoviária caótica numa sexta e ver os mesmos rostos, tão diferentes, deles. Gosto de vê-los sempre e, em alguns momentos, gosto de me ver neles, saber que sabem de mim depois dos dez e de como aqueles olhos ainda me veem.
   E depois, também, gosto de tomar café na xícara deles, de me sentar num lugar da mesa e correr o risco de ser o preferido de alguém e não dizerem, mas ficarem desconfortáveis nos seus novos lugares, tentando se acostumarem com a novidade de uma perspectiva nova da sala. Gosto de sentir a tensão entre eles, que pararam uma discussão no meio para me buscarem na rodoviária depois das dez. Há sempre alguma tensão, algum assunto em suspensão entre as pessoas que se amam, quando recebem alguém em casa. E também gosto de como eles se saem no papel de anfitriões digníssimos nesta vida adulta que eles alcançaram; eu já disse que quando os vi, pela primeira vez, eles nunca tinham usado uma calça social?

  Eu gosto de ir dormir numa cama preparada para mim, num quarto que não é o meu, de tomar um banho, antes, num chuveiro que a temperatura eu desconheço e que a potência da água sempre pode me surpreender, de ouvir barulhos novos, de escutar a louça do vizinho que não é igual a do meu, de não saber em que parte do quarto a luz da manhã vai tocar até eu acordar nem os desenhos que ela fará no piso, em que os pés demoram muito a tocar. Gosto de fingir que sempre estive na casa, de pensar em como seria a minha vida se eu nascesse aqui e não visitasse.
  Qual o lugar da mesa seria o meu? Se eu pudesse morar em todas as casas do mundo. Um dia em cada, eu teria mais mesas, mais vidas, mais desconhecimentos e o contentamento da incerteza calorosa. Eu gosto de tomar café na xícara deles e depois lavar na pia deles, com a esponja e o detergente deles.
- Vocês secam a louça ou deixam escorrendo na pia?

  Não me perguntaram nada do que eu não soubesse falar, alisaram meu cabelo, colocaram músicas antigas, relembraram histórias que eu sei que não aconteceram daquele jeito, mas eu que eu fingi desconhecer, para ouvir mais de  histórias onde eu não estive, mas eles se lembram de mim lá. Abriram a varanda, dispuseram um raio de sol para esquentar os meus pés, silenciaram um pouco o trânsito do sábado com uns LPs de jazz e risadas que incendiavam a sala, o quarto, a cozinha, o banheiro deles e, até, fazia o cão latir. Leram poesia, choraram pelas perdas próximas, deitaram no meu colo e eu não derramei meu choro, porque até isso eles fizeram por mim. 

 Eles conhecem o meu nome, do meu rosto sabem todas as sardas, as pintas do pescoço já não são um  mistério, a minha palidez matinal não se parece com a deles, mas também é familiar, o coque frouxo que uso em casa, o moletom  cinza que compramos juntos, numa feira há dez anos, também é conhecido, o que eles não sabem é que eu os assisto com os olhos mais vidrados do que os do cão quando me viu, pela primeira vez, de manhã. O que eles não sabem é que eu gosto quando a casa está bagunçada, eles estão bêbados e me pedem para buscar água. Eu abro a geladeira deles como se fosse minha, encho a garrafa de novo e coloco em um lugar que eu escolheria. Gosto de vê-los com bermudas estampadas e tênis que não usavam antes, de como são amorosos entre eles e de como ainda me buscam quando o meu ônibus para.

  Mas eles sabem o que eu vim buscar e me deram. São dois pares de olhos  que me perscrutam, sem interrogações, são dois pares de ombros que eu posso regar, se eu começar a chover;  um par de generosidade, memórias e amor que marcamos certo numa prova de múltipla escolha. São dois pares de pés que usaram os mesmos tênis por quatro anos e que, hoje, me guiam pela cidade em que eu nunca me perco, porque escuto as suas vozes. O cão late, tomamos a última taça antes de eu ir para a cama, que não é minha, mas que eu mesma arrumei esta noite. Eu poderia ir para qualquer hotel ou cidade no mundo, se tivesse dinheiro, mas em nenhuma eu me deitaria com tanta felicidade.

  É bom chegar depois das dez e não me perder na cidade. É bom chegar depois dos dez e ser a mesma nos olhos deles. É bom deixar a mala na sala, a mochila em cima de um móvel de madeira escura e ficar descalça o final de semana inteiro.  Hotel só é bom para quem quer dormir e não sonhar. Hotel só é bom para quem não gosta de arrumar a cama.
- Desculpa o incômodo, eu hoje vim para nascer aqui.
  Não moro, me hospedo, não tenho casa, ninguém tem. Depois que abriram a porta eu nunca mais fui embora completamente, porque o meu ônibus sempre para onde me buscam. Depois das dez, depois dos dez, ter um lugar no mundo para nascer quantas vezes quiser é a questão mais importante de qualquer prova. Não fui boa aluna, mas acertei o item que importa.




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