quarta-feira, 3 de maio de 2017

Se ele sabe de mim, eu ainda não sei

  Ela foi a escola hoje, eles sempre a chamam para explicá-lo. Ela é a única responsável por integrá-lo ao mundo; a nenhum lugar ele chegou, sem antes, ela anunciá-lo. Achava que não duraria muito esse seu papel, que à medida que as pernas dele se alongassem e que a voz soasse mais imperativa, ele mesmo se anunciaria, barulhento, comunicativo e irrequieto, como os filhos que não eram dela, eram. As pernas dele se alongaram demasiado nos últimos anos, os aniversários se sucederam, embora as festas continuem muito vazias; mas a voz pouco ou nunca vem. Agora, toda festa dele, ela faz o pedido e apaga a vela; pede sempre que ele se aproxime, um dia.
  Ela chegou sorridente, muito simpática à direção e fez o que parece não ter mais mistérios: repetiu  confiante algumas palavras que o especialista disse mais cedo, mesmo que não saiba exatamente o que ele disse. E, por isso deixou professora, diretora, orientadora e supervisora aliviadas de terem-na para explicar o seu menino. Logo ela que não sabe nada dele, logo ela que o persegue por entre as salas bem iluminadas do centro, pelas linhas indecifráveis dos receituários e pelos diagnósticos desalentadores. Despediu-se correta, encantadora e amável. Seguiu com o filho para casa.

   Entrou no elevador do seu prédio e olhou-se no espelho, eram  quatro, os reflexos: em um, era a mãe amorosa e competente que ela leva para fora de casa todos os dias; no outro, era o seu filho, em um maravilhoso processo, embora lento, de desenvolvimento pleno e autonomia; no terceiro reflexo era a mulher incompetente, insegura e absolutamente desesperada; no quarto reflexo, seu filho, apagado e completamente desconhecido.
- Que dor de me ver, que dor de existir em frente a este espelho.
  O terceiro reflexo segurava, ainda, um elemento meio disforme, torto, meio desmantelado, o que deixava a figura, ainda mais débil.

  Só queria saber do filho, só queria que no elevador não estivessem a galáxias de distância um do outro. Queria ser quem sabe quem ele é. Queria ser o especialista que o encontra, onde ela nunca o acha. Queria não ter que repetir as palavras de um escafandrista, queria ela mesma mergulhar no próprio filho, se arriscaria a não voltar nunca mais se soubesse onde pular para encontrá-lo. Mas nem a possibilidade de se perder nele, ela tem.
  Ela conversa com a mãe ao telefone, fala com o porteiro, com o encanador, com o chefe, com a colega da mesa ao lado, com as caixas dos supermercados da cidade inteira, fala com as plantas e o cão, todos ouvem e dão as respostas possíveis; só o próprio filho ela não alcança.
- Como saber quem é este  a quem eu amo? Preciso mesmo saber ou continuar ignorante, ainda que eu vá à aula todos os dias? Como saber quem é este que não me encontra?
  No complexo mundo das relações, no delicado e escorregadio processo de comunicação, às vezes perdemos palavras, no corredor, que eram essenciais. Escorrem fugidias e intranquilas, pelas escadas e nunca as vimos mais, se perdem em diferentes portas, entranham nos frisos dos pisos, se diluem fragmentadas e dispostas a nunca mais se unirem  ou deixamos que caiam da pilha, que levamos nos braços, e pisamos nelas, sem nem ouvir os estalos. Destruídas uma a uma, impossibilitam completamente o que esperavam que ouvíssemos ou aquilo que gostaríamos muito que ouvissem de nós. Dizer o que se tem dentro é da ordem dos malabarismos, se deixar cair uma peça, o número poderá estar condenado inteiramente. Apagam-se as luzes e amanhã tentará acertar cada peça, hoje a plateia saiu sem sorrir e o artista, foi dormir com a fome de aplausos.
  Tentar falar e falhar, tentar se explicar e não conseguir encontrar uma só luz; tentar encontrar com o profundo do outro, sem se perderem na volta, mas se desencontrarem no labirinto, antes de chegarem ao outro e nem poderem retornar a si.

  Ele é a sua prova de física em cima da carteira, ela é a aluna que não estudou, não decorou uma fórmula sequer  e por isso não sabe nem por onde começar; não faz a menor ideia se o carro A ou o B chegará primeiro. Ele é a baliza da sua mais remota prova de direção, vai derrubar o primeiro por imprecisão e todos os outros cones cairão pela sua instabilidade emocional. A relação com ele é a festa que foi sem conhecer ninguém, com a roupa errada e sem um lugar para colocar as mãos. Ele é a dúvida que não se esclarece, o absoluto impenetrável no elevador com espelhos.

   Ela fala com o filho e ele não ouve. Insiste numa comunicação que só produz ecos. Procura um olhar que ele não devolve. Só o especialista o tem. Ele sim se comunica com um filho que não é dele. Queria dizer que o ama, queria saber dele que é amada, mas sobe o elevador com uma luminária de palitos de picolé, que há três meses o seu menino produz. Saem do elevador, ela abre a porta do apartamento, tira um arranjo de cima da mesa de centro e, ali, deposita tudo o que sabe sobre seu filho, liga a tomada  e uma luz fraquinha se acende no centro. Apaga as luzes da sala e deixa que o alaranjado da luminária ocupe casa, coração e sonhos. Sentada no sofá, ela olha para luz e para o filho como se fossem uma coisa só; ela sabe dele e jamais a convencerão do contrário.  Dois palitos mal colados ameaçam cair da luminária torta, um, logo estará sobre a mesa. A maternidade sonhada não era essa, o amor precário aceso na mesa de centro ela não sabia, antes, que também é amor.
 - É lindo, meu filho. É a coisa mais linda que eu já vi.
 
   O amor é um esforço, uma aceitação de que também é bonito quando vem de outro jeito; não cabe em uma lista de preferências, está dado para ser construído a partir do que, às vezes, parece falha, mas não é. Uma lágrima cai, ela se levanta do sofá para preparar a refeição daquele que ela esperou tanto vir e que só chegou quando ela apagou as luzes da sala. Apaga a luminária, segura  e guarda o palito solto, no bolso do casaco, não vai jogar ele fora. É único. No palito do picolé, a fala do filho; só a mãe sabe o que isto é. Só um amor muito aguardado entende essa língua.
 - Se ele sabe de mim, eu ainda não sei; mas eu sei dele. Sempre soube. Nossos reflexos são mais do que dois ou quatro e todos são frágeis e fortes numa mesma potência.





2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, longe de casa neste 03 de maio frio e chuvoso

Prezada perfumista das essências e fixadores da vida

Amanda machado pega as dores, as aflições, o amor e os conflitos, transforma numa quintessência e a oferece aos seus leitores. Isto não é pouca coisa.

Passam palavras aos montes para comentar, mas apenas fazem isto - passam, não se fixam. Preciso de palavra viva, um catecismo fora dos padrões, não por mim, mas pela criança excepcional, que sempre me encanta pela sua imaculada existência.

Mateus 6
…27 Qual de vós, por mais que se preocupe, pode acrescentar algum tempo à jornada da sua vida? 28 E por que andais preocupados quanto ao que vestir? Observai como crescem os lírios do campo. Eles não trabalham nem tecem. 29 Eu, contudo, vos asseguro que nem Salomão, em todo o esplendor de sua glória, vestiu-se como um deles. …

As crianças excepcionais, intangíveis à nossa compreensão são como os Lírios do Campo -

Olhai e vede como o Senhor é bom, como afirma o salmista (Salmo 34).

As crianças que vivem esta experiência não tecem. Temos que estar atentos para um detalhe, importante para compreender a criança:

Tecer aqui é transitivo direto, no sentido de entrelaçar metodicamente. As pessoas outras que não os Lírios do Campo entrelaçam, formam laços, metodicamente com a sociedade. Metodicamente por que inclui, exclui, aproxima, afasta de acordo com seu modus operandi, digamos assim.

Aquelas crianças não fiam - Fiar aqui como um transitivo indireto - no sentido de dispensarem a fé. Esta criança vive feito um anjo, ela crê sem precisar ter a fé.

Se os pais e as pessoas que a cercam apenas verem nela o excepcional e não o Lírio do Campo, deverão repensar seus conceitos, pois seus corações estão ficando rígidos.

Um abraço

Paulo

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 4° dia de maio de 2017

Caro Paulo - leitor/escritor das profundidades, alentador neste inverno de esperanças,

Tudo o que traz aqui é sempre altamente comovente e motivador de reflexões outras. Um texto não tem que acabar depois de escrito, mas pode reverberar noutras possibilidades, a partir dos atravessamentos de leitores-autores que aprofundam a experiência da escrita. Você tem me ensinado isto com a sua generosa e precisa contribuição.

Foi lindo tudo isto que trouxe, fiquei extremamente emocionada. Obrigada. Muito obrigada.
Amanda Machado