quinta-feira, 22 de junho de 2017

Armada

  Até aos dentes. Só saio armada, a partir desse segundo de promessa.  Atravesso o portal da  indiferença,  com um cinto coberto de lâminas afiadas, coturnos de couro impermeável, calçada com meias de lã sem bordados, lisas, verdes de guerra.  Armada do topo da cabeça até ao calcanhar. Armada para não sentir o sopro do frio da imensa noite, entre a orelha e o pescoço, nem a dor de andar por caminhos que nunca foram asfaltados. Com uma mesma roupa para chuva e sol, dias de frio e calor escaldante. No bolso da jaqueta recortada de zíperes, só uma foto minha, de quem eu era antes da saída. Um rosto pacífico, de melancolia herdada, olhos grandes de querer ver o mundo além do mundo. Montada em veículo potente, que corte todos os carros em qualquer rodovia. Eu, armada, ultrapasso o exército covarde deles.

  Armada com um calendário de dias que se movem antes que eu os alcance,  que me desobedecem, me desafiam, me irritam, me entristecem e depois, me dão presentes que eu jamais pensei que merecesse. Armada de desejos que não acabam e que mesmo depois de realizados, nunca serão satisfeitos. Armada de vontade prolongada, imortal, até o dia de não querer mais. Não posso  estar vulnerável neste mundo de guerra lá fora. A arma não é branca, não é alimentada por pólvora, tampouco explode construções ou dizima comunidades. Armada de vontade, coragem, de letras num punhal que brilha até cegar, mas não corta coisa alguma. E no bolso traseiro da calça, uma foto 3X4 do filho que eu não cheguei a conhecer, mas amei, a herança que eu perdi enquanto escalava uma montanha. Desde lá eu nem tive tempo para chorar. Disseram que eu era forte, mas não sabem que eu ainda comemoro o aniversário dele todos os anos e lamento, no mesmo dia, sua partida.

  Armada com um mapa na mochila, uma bússola na algibeira e um outro retrato do rosto do amor, quando ele existia. Porque devemos ter um motivo para viver se, ainda armada, uma bala ferir e nos fazer ir ao chão, neste instante, o amor volta novinho, porque só ele pode contra a desistência para a morte. Só o amor consola na derrota; no meio de uma batalha vermelha, o amor azul que morreu, ressuscita para nos salvar da dor e da queda. Ele volta gentil, como da primeira vez em que me beijou. Vai me destruir, depois, mas antes vai me levantar, eu conheço o ciclo.

  Armada até a sola dos pés, que pisarão o solo sem dor, mas também sem o prazer de roçar a pele na grama orvalhada ou na terra marrom escura, antes da estiagem. Mais uma foto escondida, a de uma casa, com cercas e flores de desconhecidos que dizem parentes distantes, afinal a gente tem que estar armada de passado também, de ancestralidade que buscamos honrar, mesmo que não mereçam. Os mortos sempre são melhores, porque silenciados, são aquilo que projetamos para eles. No altar ou na arena, são deuses de guerra e bondade.

  Armada com as verdades que fui juntando e, mesmo assim, perdendo pelo caminho, uma está quebrada, arrancaram a cabeça de uma outra, a terceira está pela metade, mas com um furo no fundo, que em alguns dias, imagino, a fará completamente esvaziada, uma outra que escondi na bolsa com cadeado e a deixei inegociável, sem concessões, mas que agora, assim, sem arranhões não parece tão bonita. Armada das minhas verdades provisórias, porque desconfio que não durem até a chegada. Vou recolhendo possibilidades de novas, pelas casas onde durmo e que abandono antes de acordarem para me oferecerem o café ralo da manhã. Só um retrato de santo, que eu tiro de dentro da minha camiseta, no escuro e com quem converso com intimidade humana, quando todos já foram embora.

  Armada com fórmulas letais, descobertas enquanto tentava criar uma cura, uma vacina, prolongar as vidas que sempre me pareceram tão importantes. Veneno produzido em um laboratório de boas intenções. Um cálculo errado e matamos mais rápido, vulnerabilizamos, quando queríamos proteger. Armada de erros, depois de sucessivas tentativas de acertos. Armada de culpas, incertezas e palavras que traem, a mim que falo e a eles que escutam, porque foram usadas fora de contexto. Enunciados potencialmente destruidores; mulher-bomba. E um retrato de um lugar idílico, enrolado junto ao meu peito, com um oceano verde em que eu nunca me molhei, mas sonhei.

  Amada, eu disse, até aos dentes. Eu só saio se for amada. Só atravesso o portal da apatia se estiver amparada de mim mesma e do meu amor,  completa e irreversivelmente amada. Nenhuma bala tingirá  meu corpo de vermelho, nenhuma palavra me matará, nenhuma verdade minha ou deles me submeterá, se eu estiver amada. Posso sucumbir aos venenos, poluentes, balas furiosas e golpes de punhal dilacerantes ou às lâminas afiadas das facas, mas se for amada, resisto a cada dor com o mesmo rosto melancólico de antes de partir e com olhos grandes, sedentos de um depois. Porque sou amada, é essa a minha única proteção possível nesses dias difíceis, de batalhas por nada.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, cinco deste julho antártico de 2017

Prezada Amanda Machado
Descritora das femininescências

Não, não existia Femininescência ainda na língua pátria até este presente momento. Criei este neologismo para você. Origina da aglutinação de Feminina + Luminescência, que é a luz própria geradora de vida e da energia, sem elevação de temperatura e sem influência de fatores externos. Por exemplo, há luminescência nos vagalumes - um brilho próprio, sem necessitar de outrem.

Assim, doado o título, quando te perguntarem o que faz, pode responder que é uma Ativista da Femininescência.

Bom, visto assim a poesia da sua obra dos mil pés errados, mas todos femininescentes em sua natureza primária, vamos ao que me trouxe aqui.

Seu universo feminino encanta. A moça que sofre amada e armada de dúvidas, arranhões n'alma e no peito a angústia, trás hoje uma historia que pouca gente fala - A mãe de um filho que já morreu.

A mãe aqui está centrada na tônica de toda dor da mulher armada e amada ou não ou quase amada. Ela é um número na página de alguma gaveta da burocracia. Eu lembrei e estou repassando para você uma matéria sobre este drama pessoal, que li a algum tempo atrás. Esta dor nunca se acaba. Foi por isto que vim aqui hoje, fazer desta carta portadora deste texto aqui embaixo. Não se prenda ao título, por que a matéria é muito mais que isto.

https://tab.uol.com.br/aborto#imagem-1

Um abraço

Paulo


Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 06 de julho de 2017

Caro Paulo Abreu,
como se não fossem suficientes as suas leituras generosas e reflexões indispensáveis neste blog, ainda surpreende com um título absolutamente imérito, mas não sou de negar os presentes, merecidos ou não, quem os dá é quem avalia. E ser Ativista da Femininescência...que honra!

Linda matéria, li toda ela com lágrimas nos olhos. É mesmo uma dor que ninguém entende. E todos temos, em alguma medida, dores inimagináveis, inalcançáveis e incompreensíveis pelos outros, mesmo que se esforcem muitíssimo para acolhê-las. Às vezes, nem mesmo nós nos damos conta de conviver com a nossa própria dor. Enfim...dores do mundo que precisam doer, com a esperança de um dia partirem ou se agregarem suavemente a nós.
Com a gratidão de sempre, abraços
Amanda