domingo, 25 de junho de 2017

Made in um lugar que eu nunca fui

   Já tomei o banho, escolho uma roupa, pego a blusa e experimento de novo. Há mais de um mês ela está aqui, desde meu último aniversário, e eu não quis usá-la ainda. Nenhum problema com a sua cor, tamanho e modelo, fecho os seus botões, ajeito a gola e olho no espelho; não me acostumo. Eu sempre troco, visto outra coisa, coloco um vestido, um macacão, uma camiseta; eu ainda não consegui sair de casa com a blusa. Hoje eu quero usar minha blusa nova.
  A etiqueta roça a minha costela, tento puxá-la sem tirar a blusa, mas quando a seguro, percebo que são duas. Uma bem pequena e outra maior, a grande sai sem dificuldades, quase se rasga, mas ainda sai inteira, já a pequena permanece, só uma tesoura para resolver o meu desconforto. Tiro a blusa, procuro uma tesoura.
- Vou ao cinema com essa blusa, hoje.

   Seguro a etiqueta para cortá-la rente à lateral, mas com a segurança de não atingir nenhuma linha que rompa a costura. Antes de passar a tesoura, leio:
- Made in China.
  Minha blusa não é daqui. A etiqueta grande de uma loja da cidade, com instruções de higienização e conservação da roupa, escondiam a origem do meu presente. Mãos chinesas costuraram a blusa que eu escolho usar agora. A China esteve no meu armário por um mês e dez dias, sem que eu soubesse. Possivelmente, há mais tempo, outras mãos estão no meu armário, nas minhas costas, pernas, cintura, pés e tudo mais. Mas a blusa, agora sobre a cama, ainda com a etiqueta que eu me recusei a retirar no último instante, me desafia, me interroga, me magoa:
- De que mais eu me visto sem saber? Quais mãos eu ignoro, mas fazem parte da minha vida?

  Na etiqueta Made in China, informações que não estão visíveis, mas que eu leio. Eu nunca fui à China, mas mãos chinesas me vestem, reproduzem a música americana dos anos cinquenta, que eu escuto agora, me calçam, quando eu vou caminhar pela manhã. Mãos chinesas estão mais próximas a mim do que as da minha médica, que eu vejo duas vezes ao ano, assim com as do dentista. Mãos chinesas secam o meu cabelo, sopram o ar quente que eu ligo a qualquer hora do dia sem pedir a ninguém, as mãos chinesas aprisionadas na minha bolsa, repassam mensagens que eu recebo de alguém do outro lado da sala.
  Mãos chinesas fotografam encontros que parecem felizes, pratos que parecem saborosos, sorrisos que parecem fáceis, animais de estimação que parecem dóceis, paisagens de qualquer lugar de um mundo sem limites, mãos desconhecidas que sustentam um modo de vida que parece acessível, sem que ninguém as veja.
  Eu nunca fui à China, mas meu presente em cima da cama, esteve lá, veio de lá e nada me conta.
- Quem te segurou, blusa? Como são os lugares por onde esteve?

  Sou uma ilha, cercada de origens que desconheço, de vidas que eu ignoro, mas que fazem parte dos meus aniversários, minhas idas ao cinema e que me confrontam, quando eu saio do banho sem saber o que vestir. Não ter ido à China e tê-la agora na minha cama, depois de descoberta a farsa, me deixa mais incomodada do que a etiqueta na costela. Por que nos chega, tão facilmente, em sacolas de papel com um adesivo de troca, aquilo que não buscamos, nunca sonhamos, nem desejamos? E mais, porque vêm escondidas, atrás de uma mentira que não dura um primeiro embate? Por que não outras mãos? Por que a China, de repente, parece mais próxima do que a cidade onde nasci? Por que mãos chinesas me protegem do frio e as do meu vizinho se escondem no casaco, enquanto eu caio? Sentada na cama, eu tenho menos de uma hora até que o filme comece, segundo o meu relógio, possivelmente, vindo da China.

  Mãos chinesas fizeram aquela blusa. Não consigo vestir a roupa e não pensar nas mãos chinesas, ocultadas por uma etiqueta barata. Certamente não passou por somente um  par de mãos, foram mais, mas quantos mais? Eram pequenas as mãos? De crianças, mulheres? Eram esmaltadas? De que cor?  Alguém chorou em cima da minha blusa? Por quais razões? Alguém esteve feliz, enquanto a segurava? Quantos caminhos até chegar ao meu cabide? O que mais as mãos fazem, além de blusas? Tocam seus amores? Auxiliam um filho com a lição de casa? Roubam, assassinam ou ameaçam? Fazem contas ou escrevem contos antes de irem dormir? Executam músicas clássicas num piano ou tocam um instrumento que eu nunca vi? Batem palmas no aniversário de uma amiga? Presenteiam-na com uma blusa made in um lugar que ela nunca foi? O que mais as mãos, que ficaram aprisionadas no meu armário escuro, fazem e que ninguém mais vê?

  Queria sair e assistir a um filme francês com uma blusa chinesa que ganhei de aniversário. Não consegui usar a blusa, escolho uma blusa de gola alta e ponho debaixo de um casaco que eu uso há mais de uma década; ele não é chinês, as mãos que o fizeram estiveram muito mais presentes na minha vida do que quaisquer outras no mundo. O filme começa com uma mulher tomando banho e depois escolhendo uma roupa para vestir. Ela não olha a etiqueta. Made in qualquer lugar, porque ela não se interessa. Eu me lembro da blusa no meu armário e da etiqueta que eu não arranquei.
- Por favor, deusa, cuide das mãos chinesas e que a minha amiga me perdoe porque eu nunca vou conseguir vestir aquela blusa sem me sentir mais perdida.
  Choro antes da hora, as lágrimas caem no casaco feito por mãos que me consolaram toda a vida.

  Eu tenho as mãos chinesas no meu armário, o choro francês na minha noite, mas as mãos que eu queria e as lágrimas que são mais próximas, nunca foram para mim. Made in um lugar em que eu nunca fui. Made por mãos que eu lamento não conhecer e que não podem segurar as minhas lágrimas. Made por um sentimento universal: eu queria o que eu não tenho e tenho o que eu não desejo. Made por uma vida que sobrevive a partir de outras desconhecidas, ignoradas e exploradas. Made in, essa etiqueta que todos nós usamos sem saber; que nos rocem as costelas, que nos levem a muitos filmes, mas que não esqueçamos de que as nossas mãos precisam chegar antes a quem estiver ao lado. Atravessar oceanos tem sido mais fácil do que a porta vizinha. Made por mãos que não ignorem as quedas que acontecem sob os nossos olhos.





2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 08 de Julho de 2017

Amanda Machado

A incrível e angustiante história da moça sensível ao mandarim

Maestro, por favor, um fundo musical para o momento no qual a protagonista se dá conta de uma segunda etiqueta, e esta etiqueta denuncia a origem chinesa, mas por favor, que seja uma música que demarque o processo. Ah, esta, boa - https://www.youtube.com/watch?v=M-2ed2hY6Ck

Bem, nasci em Governador Valadares, de onde saí há 40 anos e não fui para os Estados Unidos - raro por que minha geração foi em peso. Saí para voltar e ainda não voltei. Fiz outra rota, a minha particular rota da seda - fui para BH, depois Juiz e Fora, depois Florianópolis/Joinville, e voltei para Minas onde escolhi terminar meus dias e enfim também não fui à China.

Quando menino, imaginava aquela multidão na China, todos de azul, impessoais, militarizados, desalmados, malvados e desprovidos de paixões humanas, a ponto de fazerem revoluções estranhas, mas nunca imaginei a cena de uma etiqueta levar a uma questão metafísica - de fato nunca havia pensado nesta possibilidade.

A moça, imagino triste como imaginava serem as chinesas constrói uma ilha - "eu queria o que eu não tenho e tenho o que eu não desejo."

Uma ilha, uma ilha deserta de paixão, de relações retroalimentadas por mecanismos que só o amor é capaz de fazer ... " uma vida (uma ilha) que sobrevive a partir de outras desconhecidas, ignoradas e exploradas ...

Se eu fosse nomear um subtítulo para este texto, eu arriscaria A Angústia, cujo gatilho foi disparado pela analogia entre a distância daqui à China e à distância entre o amor guardado não correspondido - isto dói para lá de Beijin, antiga Pequim, que prefiro e gosto mais.

Claro, há a fuga noir o filme frances, que é um amplificador da angústia, onde a mulher não olha a etiqueta, ela não faz analogia entre aqui e lá, não deve ter feito bem à moça este filme, pois contestou a validação da suas dor.

Gosto de vir aqui

Abraços

Paulo

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 08 de julho de 2017

Paulo, Paulo...suas cartas...
gostaria de respondê-las logo que me chegam, de imediato, (até respondo mentalmente) mas nos últimos tempos pego o bloco, esqueço a caneta, procuro a caneta, perco o bloco, encontro os dois, uma voz me chama...mas, chego. Tenho conseguido chegar.

A trilha sonora foi ótima!Sim, esteve ali sincronizada na sua leitura da cena...rs.

Ah...a China...tudo que é longe fascina: China, lua, sol, ilhas, os outros...

Achei a sua rota da seda muito interessante, melhor mesmo BH e JF aos EUA, penso. Sei lá...este é um país que nem a distância me fascina...

A etiqueta da blusa que a moça nem usa, mas que ainda incomoda, porque continua lá...
Também acho que o filme não pareceu interessante a ela. Não depois da viagem à China.

Gosto muito quando vem.
Abraços
Amanda