terça-feira, 18 de julho de 2017

Desde que não queime as letras

   Eu não esperava, nunca tinha acontecido antes.  De todas as vezes que a chama se descontrolou em quase nada me afetou; um arroz queimado sim, um tomate demasiado desmanchado no molho, uma água que evaporou antes de ser chá, nada demais.
- É preciso regular o fogão.
  Ele disse. Mas eu soube muito antes, desde que o fundo da panela passou a ser difícil de limpar. Mas não me afetava em grande proporção. Por isso, fui me acostumando com o fogo que mandava em si mesmo. Gostava de ter uma das chamas imprevisíveis, me identifiquei com os seus começos muito sutis, quase ínfimos e depois, quando não se via, uma labareda sem anúncio, queimando cheia de vida no meu fogão, na minha cozinha, na minha vida. Surpreendendo, queimando, destruindo promessas de refeições tranquilas e submetendo o meu paladar aos novos gostos. Era bom ser acordada, de repente, enquanto lavava uma louça e pensava noutra coisa que não era a cozinha, pelo cheiro de comida ou fundo da leiteira queimada. Ninguém entende, mas era mesmo bom os pequenos incêndios que me libertavam das linearidades.

  Buscava, no fogo que desconhecia, alguma possibilidade de assistir ao inesperado nascendo. Era sempre a minha busca pelo que não existia, mas podia acontecer a qualquer virada de segundo. Ver acontecer na imprevisibilidade de um fogo sem controle uma nova linha na minha vida, que nunca coube numa folha de papel pautada. Irregularidade não é defeito, pensei, por isso não chamei o eletricista para ver o fogão. Não foi por irresponsabilidade, mas por fé muito dirigida àquela que, na minha cozinha, não era perigosa, mas proteção contra a prudência de uma vida assistida de regularidades.
  A chama desgovernada me lembra daquilo que nunca aprendi, para o que eu ainda não tenho um nome e que, mesmo assim, entra na minha vida e arde o quanto pode, sem vocativo definido, sem cidadania, sem indícios muito claros de chegada e, também, sem previsão de término. Posso comer o arroz queimado ou não; posso beber o chá na primeira tentativa ou ter que ferver outra xícara de água.

  Moro numa casa há uma década e não sei quase nada dela, porque prefiro não saber nada completamente. Acho que num mesmo quarto uma pessoa deve experimentar levantar de lados diferentes todos os dias, acordar com todas as variações possíveis de incidência do sol no corpo. Uma cama que não muda de lugar não navega em novos sonhos, não ajuda a despertar os outros sujeitos que dormem em nós.
  O chão arranhado, as paredes marcadas de móveis que não estão mais lá, os pregos sem quadros e os quadros sem lugares nas paredes parecem receber novos inquilinos a qualquer dia. Num domingo à tarde eles chegam, numa terça ao meio-dia vão embora; circulam pelos cômodos, vivem, amam, cozinham, acordam e adormecem na minha cama, cujo sol nunca sabe onde irá encontrar sua cabeceira.
 
   Mas a chama, desta vez, subiu muito mais do que a minha atenção podia abrandar, queimou o fundo da panela, o cozido, o pano de prato, pendurado na tampa do fogão aberto e se alastrou sobre a bancada da cozinha. O fogo queimou um caderno de receitas com as letras antigas das pessoas que eu não posso mais segurar as mãos, estourou um dos vidros da janela, pintou de preto o meu teto e salpicou um pouco do seu calor nas minhas mãos que tentaram apagar o descontrole que eu amei.
  Não foi grave, em quase nada. Mas pedi desculpas ao zelador e a cada vizinho preocupado que encontrei depois do incidente. Eu protegi a irregularidade que poderia ter se alastrado pelos corredores, eu guardei o descontrole da chama e achei que pudesse me proteger da linearidade absoluta na sua inconstância.  

  Eu quero um sono novo por dia, claro, mas não posso correr o risco de desabar um teto por isso. Eu quero sim um gosto desconhecido na comida de todos os dias, mas não posso me envenenar pela novidade.
  Me encanta, me desconcerta, me mostre um mundo que eu ainda não tenha me habituado, desde que não me surpreenda, bêbado, gritando à minha janela às duas de uma madrugada de quarta-feira e acorde os vizinhos. Me fale de um medo seu que eu não conheça, desde que não me surpreenda com a herança dos gritos do seu pai com a sua mãe, com a sua mão dele, no meu rosto dela. Eu quero conhecer a sua filosofia,  desde que não me surpreenda com uma ideia grave de verdade e se esqueça de ser só feliz, se eu discordo.

  Eu quero chegar em casa e encontrar os quadros noutros lugares, tropeçar num móvel que não estava lá quando eu saí. Eu quero descobrir novas taças, copos ou talheres, mas só não me surpreenda com seus toques ásperos, quando eu não quero ser tocada; são sempre ásperos os toques não desejados.
  Eu assumi o descontrole do fogo, eu o vi queimar o pano de prato barato na tampa do fogão, vi alcançar o teto branco, destruir o vidro num estalo barulhento e assustador e chamuscar  um caderno de receitas que eu não posso nunca mais ler inteiro. Não lamento pelo fogo que eu escolhi, mas não suporto não ter mais as letras que eu amei bem mais que a chama.

   Na mão, uma fileira de bolhas que eu não poderei estourar, uma pele enrugada, vermelha, latejante, que me lembra a todo tempo da chama descontrolada que eu deixei morar na minha cozinha . Às vezes é preciso que se queime mesmo, às vezes não há alternativa para saber até onde um fogo alcança, mas o tempo de apagá-lo não pode falhar.
  Não acho que  fica cicatriz, não da chama que eu chamei de minha. O fogão, eu ainda não mandei regular, mas o fogo ainda não tive coragem de usar, não aquele, não agora, ardida de surpresa, dolorida de imprevisto não controlável. Que o fogo me surpreenda, porque não tenho muito medo, desde que não queime as letras que me farão muita falta.





2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Belo Horizonte, 05 de agosto de 2017

Amanda Piromachado

Lembro de quando lecionava na faculdade e numa destas aulas onde os alunos querem que acabe logo, eu já ia dizendo - você pode não saber nada, mas se souber a língua pátria, quase tudo será respondido. Sim, é verdade, aconteceu naquela manhã de uma moça bonitinha, pernas visíveis sob uma saia descontente com a incomoda posição, a ponto de puxa-la a cada minuto.
- Professor ... chamou com a mão estendida ... professor, pode me explicar o que é esta tal de língua pátria? Pois é ... faltou-me ar.

Naquele dia eu falava das ligações pirogênicas - piro - fogo / gênicas - criação de; logo era uma ligação bioquímica que produziria ... o quê o quê? Fogo respondia a turma impávida.
Não, meus amigos, produz calor mas um calor controlado, etc e tal e aula acabava sendo interessante (pelo menos eu achava).
- Mas, professor, por que não produz fogo?
- Por que o fogo se alimenta de AR, do ar que respiramos, do ar que não controlamos, do ar que nos une e nos separa - é impossível deixar de admirar o fogo, mas ele se descontrola pelo mesmo ar que nos falta quando entramos em stress, fadiga, medo, panico, etc ou nos convulsiona se fizermos uma overdose de oxigênio no cérebro.

É o ar, Amanda, são os ares que incendeiam a nossa vida!

Um abraço

Paulo

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, sétimo dia desse agosto estranho, de 2017

Caro professor Paulo,
que insistência a minha com o fogo! Começo sem a perspectiva dele, mas então, ele aparece...é inevitável.

Suas aulas, aqui, são agradabilíssimas, é claro que os seus privilegiados alunos também se interessavam por elas, tanto quanto o docente pelo assunto sobre o qual tratava.
Sim, o ar... as suas explicações, muito didáticas, fizeram todo o sentido para mim.
Viu que fui a última a me levantar da carteira? A aula foi muito boa mesmo! Obrigada, professor! Ótima semana, se pudermos...
Amanda