segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Os rinocerontes não usam tênis

   Os tigres caminham com precisão; são silenciosos, elegantes e ágeis. Os tigres se movem, pelas savanas, objetivos, preparados; em passos que marcam a terra, sem afundá-la. Andam como homens de negócios, com seus sapatos italianos: poderosos, soberbos e eficientes. Os passos de um tigre são mais temidos do que o próprio tigre; suas patas chegam antes dos dentes. O discreto barulho da sua aproximação devora mais do que a sua boca. Entre um passo rigoroso e outro, a possibilidade iminente de um salto perspicaz sobre uma presa que, antes dele, ninguém mais viu. Os movimentos do tigre são o que fazem dele um tigre; a linguagem corporal no reino animal é inescapável. Todos os tigres se movem como um tigre; qualquer tigre se moverá como todos os outros tigres, senão não sobreviverá à selva.

  Dez da manhã:
- Muito cedo para almoçar, já um pouco tarde para caminhar. Mas se não me movimentar agora, mais tarde pode chover, o telefone pode tocar, pode faltar água, gás, posso receber ou querer ser visita. Vou já!
  Tênis e sol amarelos, calça e fones pretos, camiseta, boné e céu azuis. Filtro solar, playlist nova, relógio, dois reais para a cocada da padaria, na volta.  
  Aos domingos, especialmente, meu corpo reclama por liberdade. Não sou um tigre, não me movo sequer com o mínimo da sua certeza, mas enlouqueço se não posso me mover. Quase perdi o juízo, por completo, uma ou duas vezes em que estive impossibilitada.
- Nunca mais.
  Foi a minha promessa.

  Caminho pelo mesmo itinerário há anos; porque conheço seus obstáculos, os buracos, as dificuldades de acesso, as falhas nas calçadas e também porque sei das suas belezas, os três ipês, as duas praças, as cinco casas antigas, o prédio ao final da rua, de janelas largas e varandas rústicas, onde um dia vou morar. Já mudei de caminho algumas vezes, mas pareço trair um costume, um hábito que é meu, mas também da rua, ela também me espera. Eu sei, eu personifico os lugares. Sinto que são meus e que sou deles; tenho amor e sou amada por um apartamento, uma esquina, um banco debaixo de determinada árvore. Tenho medo e sou rejeitada por um beco, uma rotatória, um quintal com arbustos densos e baixos.

  Até as pessoas com as quais encontro se repetem. Algumas eu só conheço de relance entre passos muito apressados ou uma corrida ofegante. E só encontro-as quando estou com a mesma malha e tênis, sempre acho que não me reconheceriam em um universo que não fosse esse, em que eu não estivesse de pé e ativa. Elas sabem de mim pelo meu andar. Como o tigre que tem a sua identidade marcada pela maneira como se move. Hoje, só tive dois desses encontros, porque o horário habitual  de caminhada não é esse, mas sorriram e como a rua, pareceram também sentir a minha falta.
  Eu estive leve, alegre, desajeitada também, para um recomeço, mas andei tranquila e pacífica como uma vaca no pasto ou uma garça no remanso de um rio.
  Mas ao seguir para a padaria, um desconhecido se movia pela mesma calçada que eu. Um homem com uma cadeira; dessas que fazem conjunto numa mesa de jantar. Com uma das pernas no chão, ele arrastava a cadeira, onde tinha o pedaço da outra perna escorado. Entre a meia perna e a cadeira, uma toalha azul dobrada.

  Uma toalha azul para amortecer o impacto, uma toalha azul macia, entre o acento da cadeira e a perna cortada. Recente ou não. Acho que amputação era recente porque ainda estava enfaixada. Eu senti dor, não pela amputação, mas pela condição que ele tomava para si.
- É um tigre esse homem! Que certo, que objetivo! Determinação nas raízes.
  Mas tentei não olhar. Passar como se nada me afetasse, como se um homem com meia perna amputada, arrastando uma cadeira fosse completamente natural nesta selva. Tive medo de não saber ultrapassá-lo, diminuí a intensidade dos passos, tentei tomar distância e, principalmente, não ter pena.
 - Ele não vai falar comigo, ele não me conhece. Não pertencemos a mesma espécie. Eu sou uma garça de volta ao pântano.
Lembrei.

  Mas ele disse, ele se virou para trás, onde eu estava e sorriu com a plenitude de um domingo de sol. Depois, me desejou um bom dia e eu corri. Corri o mais rápido que os meus pés puderam arranjar de improviso. De susto, de curiosidade, de surpresa e, especialmente, pena. Pena por achar que eu era a garça.
  Entrei na padaria, não queria vê-lo mais. Não agora, não em frente a uma dificuldade dele em absoluta superação e tantas minhas, ainda desconhecidas. Comprei a cocada, esperei ele estar mais afastado e corri, de novo.
 - Uma garça esse homem. Que alegria, que leveza, num remanso imperturbável e alheio aos movimentos fáceis da vida e aos olhares perturbados de compaixão.  

  Os rinocerontes caminham com a dificuldade de um corpo muitíssimo pesado. Os rinocerontes carregam o peso da sua fealdade, da sua estranheza enrugada e cinza. Os rinocerontes se movem como podem, não da maneira mais agradável ao olhar. São pesados por natureza, por uma decisão que antecede ao nascimento deles; os rinocerontes não usam tênis amarelos, solares. Os rinocerontes, mesmo ameaçados de extinção,  sobrevivem com o seu andar pesado. Somos da mesma espécie, eu, o homem da toalha e o rinoceronte, eu nunca fui garça. Corro até ao rinoceronte da meia perna amputada, diminuo a intensidade dos meus passos, mais uma vez, agora para aproximar-me dele.
- Bom dia! Quer um pedaço?
-Cocada? Adoro.
  Volto para casa com meia cocada e com os passos que a natureza deu a mim. A rua fez-me muita falta e eu a ela, penso, e as pessoas nela também sempre fazem. Não importa como movem-se os rinocerontes, o crucial é que eles nunca estão estáticos.  



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