sábado, 16 de dezembro de 2017

Sob a sombra de um bonsai

  Um bonsai é como qualquer outra árvore,  precisa de luz solar, poda, água e, às vezes, adubo. A frequência de cada um é determinada pela espécie e, até, pelas características individuais de uma árvore. As árvores não são uma coisa só; são diversas em necessidades, produtividade, forma. A especificidade do bonsai, com relação à árvore, é só o tamanho. Um bonsai é uma árvore que cabe na mesinha de centro e, talvez por isso, precisa de olhos muito atentos às delicadezas dos seus pedidos. Um bonsai é um sussurro. Eu não soube como cuidar de um, talvez de árvores em quintais eu soubesse. Parece-me que quanto menor, maior a entrega. Para cuidar de um bonsai, eu teria que aprender, antes, a não ter pressa, saber escutar silêncios e a não esperar nunca pela sua sombra.

  Não é o seu primeiro recomeço, todas as outras tentativas foram a promessa de uma última, mas nenhuma, ainda, logrou o sucesso de derradeira. Não é a primeira vez que desenha uma linha imaginária sob os pés e segue os primeiros passos sem olhar para os lados; para não desequilibrar-se. Nem é a primeira que força um sorriso, parece otimista e ri de si, para não perder-se em tristezas.
Não é a primeira vez que troca de sapatos para aprender novos caminhos.

  Volta nu, quase sempre. Sem dinheiro, falido de laços, rompe com os cenários, personagens e narrativas da página virada, porque seus recomeços chegam com pesadas canetas que ele pressiona contra as folhas novas. Chega sempre afastado de esquinas antigas, que ainda o chamam, mas que ele resiste em reconhecer seu nome. Quando volta, traz sempre uma muleta que o ajuda a sustentar os joelhos nas primeiras descidas. Teve o peixe, numa das vezes, e se esqueceu dele no aquário sujo, sem comida e sob os raios da luz direta com a janela da cozinha aberta em menos de um mês; vinte  e seis dias e estava morto o seu peixe e acabado o seu recomeço. Ainda lembro-me, com saudades e lamento, do peixe amarelo na água turva.

  Teve outra vez, que cruzou o portão com um hamster. Gaiola, roda, ração, brinquedos coloridos e promessa de vida longa para o roedor com quem desbravaria seus inéditos começos - aventura partilhada - mas que desapareceu dentro do sofá numa liberdade, nada vigiada, em um mês e meio. Chamamos o hamster branco de Tomás e gritamos seu nome por dias, enquanto rasgávamos o sofá inteiro. Perdeu o Tomás, o único sofá da casa e a promessa de recomeço venturoso.  Também teve  a vez do  livro sagrado, que atirou do décimo terceiro andar, quando não conseguiu entender seu texto.  Teve a namorada, uma segunda, uma terceira, uma quarta e depois nem o número soube; mulheres que atraídas pela sua errância, arrependimento, pés quadrados  e olhos marrons tentaram resgatá-lo das suas perturbações cíclicas. Pelas mulheres, pelo Tomás, pelo sofá e pelo peixe, ainda sinto muito.   
   Dessa vez saiu com um bonsai. Já são mais de vinte semanas que ele e o bonsai dividem um mesmo teto. Escolheu o melhor lugar para sua pequena árvore, colocou-a no centro da sala e da sua vida. Como das outras vezes, deposita firmemente suas esperanças de recuperação no êxito da sua parceria.
- Precisamos manter o bonsai.
  É o meu primeiro pensamento da manhã e o mais recorrente dele, pelo dia todo, desconfio.
  Logo que o vi, pela primeira vez, com a arvorezinha nas mãos, eu suspeitei que seria o fracasso mais certo, ainda que quisesse que fosse mesmo sua muleta mais firme, sua possibilidade mais plena de reescrita.

  Mas ele e o bonsai são feitos um para o outro, tenho achado. Ás vezes, chego ao apartamento às três da tarde e uma luz irradia no meio da sala, sobre ele, que diminui a amplitude do seu olhar e aumenta sua profundidade a cada dia, para alcançar a companhia que o sustenta, mesmo que não tenha mais do que trinta centímetros.
  Nunca vi um jardineiro mais leal,  disposto e entregue. Ele conversa com a voz pequena das raízes da árvore, entende o som do chacoalhar mínimo das suas folhas, poda, molha, leva ao sol, protege do vento da noite e tem se sustentado tanto quanto os troncos delicados dela. Ele é um homem que entende a língua do seu bonsai. É raro, é autêntico, é de uma beleza comovente o encontro das suas mãos, antes inábeis, com os galhos curtos e finos da arvorezinha-redentora.

  São absolutamente encantadoras a cenas que eu tenho podido assistir nos últimos cinco meses, mas invejo-os.
  Embora torça por ele, queira muito bem ao bonsai, goste de plantas e o ame, para sempre. Invejo-o porque eu, tão dedicada, tão preparada, tão determinada, não consegui manter um bonsai na minha sala por muito tempo; nunca compreendi a delicadeza das suas necessidades. E invejo o bonsai também, muito, talvez mais do que o jardineiro porque eu, tão dedicada, tão preparada, tão determinada, não consegui manter os pés quadrados em linhas menos tortas. O sussurro foi demasiado efetivo para alcançar seus ouvidos e coração. Mais do que uma voz certa, o volume.

  Trinta centímetros de flora e ele, agora, tem outra chance. Enquanto as esquinas gritam o seu nome, ele se ocupa do sussurro na mesa de centro da sua sala. Acabou o peixe e a sua mudez aquática, o roedor e a sua voz aguda e agarrada, as palavras sagradas e a sua opulência que afugenta, foram embora as mulheres com suas vozes apaixonadas de maternidade errada e o jardineiro, agora, resiste sob a sombra do seu bonsai. Que ela dure, que ele dure. Que só morram de velhice esses dois. Ele é um homem como todos os outros homens do seu tamanho, mas a delicadeza da sua alma cabe numa mesa de centro. Quanto menor, maior a entrega.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais neste fatídico 2017 em 27 dias já percorridos de dezembro.

Estimada Amanda,

O tempo voa, e de uma forma tão previsível que parece tangível, mas só parece, pois o tempo é uma das armadilhas do universo que nos cerca. Não este imensurável, repleto de estrelas, cometas e galáxias e buracos negros e tantas coisas mais, mas aquele o qual evitamos, o universo que criamos para nos instalarmos nele e acreditar que ficamos invisíveis e imunes ao tempo.

Enquanto lia seu texto, excelente por sinal, da passagem do primeiro para o segundo parágrafo pensei que a protagonistas estava ouvindo sua consciência, da maneira que se deu a ruptura da linha de pensamento. No parágrafo terceiro é que reparei que entrou um segundo personagem - o outro.

O outro aqui não termina nada que começa, não cuida de nada ao qual se dedica, pois estas coisas não entram no seu universo, passam por ele como a luz passa pela Terra, apenas passa.

O que efetivamente o faz largar tudo aquilo que começa? Numa visão rápida, incautos dirão que não sabe enfrentar os obstáculos naturais que as tarefas da vida oferecem, talvez por medo, preguiça ou até traumas latentes.

E esta hiperatividade que a narrativa descreve, que o faz pular de um lado para o outro? Poderia ser insatisfação ou insegurança pelo desafeto da mãe ou o abandono do pai que provoca pânico, medo, xixi na cama, pavor noturno?

Não existe uma resposta única para esse comportamento mas, sem dúvida, há algum fator importante impedindo-o de concretizar o que quer que seja. A este fator eu denomino (humm, mais uma daquelas teorias malucas de Paulo Abreu - rs) de Blindagem do Universo Pessoal. Isto custa caro, faz a pessoa sofrer muito por que não entende como as outras pessoas não entendem sua linha lógica de raciocínio, por mais absurda ou heterodoxa que pareça.

Certamente há algum processo de desequilíbrio muito grande em sua percepção de mundo que ainda não lhe permitiu estabelecer com clareza qual a meta que pretende atingir na vida que nós, os outros, entendemos ser a mais óbvia, uma vez que lemos as obras completas de Machado de Assis.

Então, quando eu vejo uma pessoa com este perfil tomar uma dedicação extrema com algo que para nossas vidas é pequeno, de maneira que nem mesmos com nossos superpoderes de visão ultra-sensorial conseguimos realizar, eu vejo que ela está atingindo o Tao, o seu ponto de equilíbrio. Para onde irá pender este processo? Não sei, poderá se encolher mais e mais para dentro do seu universo ou poderá num big bang (bazinga) libertar-se da sua clausura compulsória. Aí, salve-se quem puder!

É sempre um prazer vir aqui. Obrigado pelo café juiz forano. tem dia que fico mais saudosista sobre Juiz de Fora - estou ficando velho!!

Um abraço

Feliz 2018, vá Amanda e seja Feliz!!!

Paulo Abreu

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 28 de dezembro de um 2017 que já atravessa a porta de despedida

Caro Paulo,
Viu o tempo neste texto, falou sobre ele e eu já o interrogava noutro que eu só havia começado, mas tinha um parágrafo inteiro que dissertava, bem rapidamente, sobre os seu mistérios ...enfim, dessas sincronicidades junguianas...vai saber?!

Sim, está completo de razão sobre as especulações, científicas ou do senso comum, que analisam as mentes dos que nunca chegam ao fim de suas iniciativas, que perdem a paixão, o foco ou a razão primeira do que pareceu tão essencial e deixa de ser.
Achei ótima a teoria da "blindagem do universo pessoal"...ela pode sim explicar ou, pelo menos, ajudar a explicar o histórico comportamental da personagem/paciente.

Ao se ligar ao mundo das pequenezas, a personagem se enclausurará de vez ou irá se libertar? Essa é uma ótima reflexão!

Sou eu quem sou grata pelo café, Paulo.
Abraços,
Um ótimo 2018 para você também. Sigamos!