terça-feira, 16 de janeiro de 2018

O último baile antes do próximo banho

   Às vezes, é só entrar com os dois pés na água e o rio raso é calmo e acolhedor. Molhar todo o corpo é fácil e sem lutas; o mergulho longe da margem, onde a água é mais límpida e transparente, não causa medo, nenhuma escuridão demora nem o completo silêncio angustia. Água e corpo se encontram sem disputas; não há esforço. O banho é um longo despertar, de sussurros tranquilos e cheiro de café; é um acordar lento, aos poucos afastando os sonhos e impregnando o olfato, a audição e a visão com a materialidade e a concretude do outro lado da cama .

  Noutras vezes, basta um pé se aproximar da água e a corrente avisa que não será pacífico molhar a cabeça. A água não se entrelaça ao corpo, ao contrário, expulsa-o, ora afasta-o ora aproxima-o com rispidez, formando círculos, redemoinhos que exigem dos músculos toda a potência para o corpo não ser submerso neste fundo de rio e a alma não ser tragada pelo universo líquido; é um despertar sobressaltado e nervoso.

  O rio intranquilo de hoje é no mesmo lugar do remanso de ontem, o corpo disposto está sobre os mesmos dois pés que reconhecem o caminho, mas estranham muito o movimento. Não há meios de saber sobre o encontro da água com o corpo até estarem um diante do outro.
Num dia de clima bom e tempo a ruir, de rio agitado, que rejeita o que sou, não há muito a fazer. A natureza exerce a insubmissão que é dela, posso recolher os pés, voltar para a casa com o cabelo seco e a desistência da intenção de banho.

   Quando o rio não admite meu corpo nas suas entranhas, quando mergulhar exige um esforço que eu não posso empreender, não insisto, invento outras modalidades de descanso. Ontem, eu enchi um barco de flores e não o enviei a lugar algum. Deitei entre elas, fiz delas meu rio, anexo do meu corpo, minha alma saída de mim. As flores no barco e ele longe da agitação, que batia em outro lugar. Recebi a visita de um sono leve, entre estar acordada e não estar, uma preguiça fresca, um agrado que me dei sem planejar.
  No barco, inerte,  de flores reli uma história que escrevi  sobre um tempo antigo, nela não tinham homens que mandavam nem mulheres que obedeciam, era uma narrativa curta, trinta e duas páginas onde cabia toda a criação do mundo. Eu a escrevi para mim, nunca a mostrei a ninguém; mas todas as vezes em que a releio, descubro uma informação que eu não tinha.

  Ontem, depois que o rio pareceu-me demasiado inquieto para um mergulho duradouro, tive mais tempo para resolver as pendências adiadas. Foi, então, que cometi alguns assassinatos, calorosamente premeditados. Matei dois arrependimentos e um amor, que há muito, vazio, já não tinha serventia, a não ser produzir ecos dentro de mim. Bastou, basta. Nem precisei me levantar, amasiada com  a coragem, aceitei a insegurança da completa ausência, sem as minhas vozes duplicadas, sem os disfarces das risadas e aplausos forçados.
  Não enfrentei o rio, mas, finalmente, me desprendi de um outro medo, que é o de não saber o que fazer com um bolo inteiro, quando se queria só um pedaço. Tornei-me um centauro, metade mulher, outra metade cavalo e investi com a minha espada contra o que me ocupava com raízes, mas nunca faria sombra, quando eu precisasse descansar. Bastou o amor solitário cair e os dois arrependimentos agonizaram junto dele.

  Com os dedos ainda quentes do sangue, abri os espaços em mim e limpei os restos de memória salpicados no chão, desde o último carnaval; os confetes que as minhas mãos lançavam na minha própria cabeça, enquanto eu esperava meu par, que nunca chegou.
  Antes da completa limpeza, usei o salão para dançar vinte ou trinta músicas, marchinhas, sambas-canção e me despedi de cada pedaço de lembrança, soprando o confete para longe. As danças sem par, eram irregulares e livres, soltas de marcações e cuidados com os pés alheios. Dancei, cantei, bebi, sorri e não me lembrei de esperar, sentada na cadeira de desolação, por mais ninguém; estavam mortos os que adiaram a minha alegria.

  Mas, depois de um dia distante do rio, o próximo mergulho não vai ser evitado  por muito tempo. Nos últimos dias tem chovido muito, então é possível que o nível fluvial também tenha aumentado e os fluxos de água não são pacientes.
  Então vou esvaziar o barco de flores e carregá-lo até as margens do rio, ficarei nele até ter condições de entrar sozinha na água. Vou arrastar os corpos dos mortos até o meio e, se as águas estiverem incontroláveis, é possível que sejam levados pela correnteza. Depois, subo, nado, resisto e, cansada, sinto a água limpar até os meus dedos sujos de decisão. O baile, o banho, a água calma e os fluxos ferozes, o mergulho, todos  acontecem num instante, mas se repetem todos os dias.


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