sábado, 20 de janeiro de 2018

Para não embarcar na promessa do impossível

   Para não querer esquecer a música, para não desligar o rádio do carro, se ela tocar, para não mudar o canal da TV, se ela surpreender numa cena do filme, na novela que só assiste porque está cansada demais ou na série, que nunca viu antes. Para não sentir os abalos de afetação, vindos em ondas até ao coração, para não ser submersa em uma enxurrada de memórias e dúvidas sem respostas.  Para não ser captada eternamente pelo ritmo a cada vez que a música chegar, para não ser refém do medo que ela se apresente em um lugar público impossível de fuga. Perdoar.
   Não culpá-la por ter estado nela ou ela em você; por tê-la feito tão sua história, que agora não sabe gostar mais dela, só porque a história é outra. Libertá-la.
  Soltá-la do cativeiro da lembrança puída, rota, sem serventia. Deixar que letra e melodia sejam para além do que os poros e os pelos dizem que são. Não desligar, não trocar de canal nem tentar esquecê-la mas ouvi-la, cantá-la, mesmo se chorar, como se a música fosse nova e pela primeira vez alcançasse os tímpanos. Uma mesma música que não pertence somente a uma história acabada, mas ao começo dela e tudo o que de melhor ela plantou no canteiro aberto que a recebeu. 

  Para  levantar antes das sete e correr na avenida ainda vazia e com o sol menos latente, um despertador e o sono cedo, restaurador; colocar o tênis antes da ideia de um descanso muito largo entre as paredes do quarto verde. Querer imagens, sons, buscar pessoas com as suas infinitas sutilezas de manifestações. Com os sustos, as surpresas, as gentilezas e, até, agressividades; os nadas que também importam e que enriquecem os cenários das manhãs de sábado. Procurar hortelã e pimentão no mercadinho, levar berinjela, salsa, alecrim e um desenho de criança na sacola branca e fina, quase transparente.
- Para mim? Muito obrigada, o que é?
- Um desenho.
- Muito bonito. Muito obrigada.
  Não disse? As pessoas e as suas gentilezas, as pessoas e as suas mudanças de planos para o almoço.
  Sair bem cedo, antes que o carro atropele as esperanças, antes que o sol encontre a persiana gasta e o sábado se prolongue em preguiça e exílio voluntário.

  Para não pedir de joelhos que fique, alguém que já foi embora, liberdade, desejo de boa sorte e desculpas em lugares certos - o chão não é um deles.
  Compreensão  das diferenças entre distância afetiva e geográfica, a primeira é sempre muito mais longe, às vezes irrecuperável; cartografias humanas diariamente sujeitas às modificações.
  Aceitar a ilimitação dos desejos e a limitação dos afetos. Encontrar uma canoa, navio, trem, foguete, cometa ou avião que transporte para outros lugares o que já não é mais daqui, ainda que ele esteja  no sofá da sala; inerte de medo. Lembrar-se das duas mãos que ampararam, mas que podem disparar, impulsionar ou, apenas, desamarrar. 

  Para não ser tarde demais para subir na onda que já está pronta para quebrar e arrastá-la até à areia ou até ao mar aberto. Para não engolir água, não disparar o coração de medo, para não ser tarde para gritar socorro ao salva-vidas, para não ter que fingir saber o que não sabe, para não nadar para o lado errado; observação e distanciamento, antes do mergulho.
  Acreditar no mar e nos braços, mas não ser completamente submetida à água, na confusão de uma tempestade repentina. Saber dos riscos, mas também dos portos; ser calma na escuridão e ondas dispersas, mas não perder-se muito das luzes do farol. Não confiar completamente nas vozes de fora, mas não ignorá-las, podem saber bem mais do que achamos que elas sabem. 

   Antes de ser atropelada pela ansiedade, que corta os carros na avenida; antes que a esquizofrenia familiar se manifeste, uma visita respeitosa à loucura, hospitalidade sincera e acolhedora.
Não temer a insanidade, mas não se apegar demasiado aos limites de um diagnóstico, porque assim, também, é a normose; que repete os padrões esperados. Não ser preestabelecido; ser cambiante.
  Não matar de inanição a possibilidade criadora. Inventar uma língua nova, uma palavra, um dia nunca visto antes, uma estação do ano, um aniversário, uma música, um país, um tipo de governo ou sistema social, um passo de dança na cozinha, um nome de algo que não exista e algo que não exista para caber no nome. Inventar, antes que seja tarde; que a reprodução sistemática  se alastre e ocupe completamente os campos, que eram férteis, mas imperceptíveis ainda.

   Para não corromper o silêncio pacífico das manhãs de despedida, ajudar com a bagagem, embrulhar as partidas, nomear com caneta esferográfica preta os pacotes, as memórias, os santos, os retratos, os discos que ninguém mais ouve; só a música fica. Escrever nas caixas e prevenir os carregadores das fragilidades transportadas.
  Voltar para casa, quase vazia de móveis e completamente deserta de passado, com berinjela, salsa, alecrim e o desenho de um barco.
  Para não se calar por medo de não voltar ao conforto do silêncio das manhãs de sábado, gritar, chorar e soluçar largamente. Sentar na cadeira que ficou e olhar para a parede com a marca de um móvel que não é mais dela, até a música que poderia ser renegada alcançar as batidas do coração e acalmar o inesperado já sabido.

  Estacionado no lugar do caminhão de mudanças, já pretérito, um ônibus verde completamente vazio, sem nem o motorista dentro. No lugar do nome da linha, do bairro, da cidade ou vila, uma promessa inscrita: "Resgatando vidas". Para não ser levada pela história de um resgate improvável, impossível por um ônibus parado sob a minha janela, coloco o desenho do barco em linhas tortas e colorido bem vivo, regalo da manhã no mercadinho, na porta da geladeira. É sempre melhor ir, deixar ir, ajudar a ir do que nunca mais alcançar, mesmo quando perto. 
  Um barco, uma música que fica, uma mão aberta, um copo com água e açúcar, um caminhão de mudanças indo embora, são possibilidades melhores do que um ônibus vazio, prometendo a impossibilidade que é o resgate pela direção alheia.  



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