domingo, 21 de janeiro de 2018

Parece loucura ruim

  São duas lentes aflitivas que contornam corredores, atravessam paredes, escondem-se entre os vãos da escada; fungos que se alastram na umidade soturna. São olhos escuros de afeição indesejada, uns olhos de oferta imposta que os ombros dela recusam. Recusarão sempre.
  Depois dos olhos, foi se encurvando, confinando o corpo em roupas escuras e escolhendo as sombras, mas os olhos permanecem. Duros, pesados; grudados na nuca. Peso imposto, armadilha grotesca, disfarçada de admiração.

  As horas correm, o dia acaba, o portão se fecha atrás da desconfiança, a porta está trancada, alarmes e câmeras vigiam a noite, mas os olhos duram, mesmo depois de já terem ido embora. Nódoa persistente que atrasa o sono e atravessa sonhos, agora, intranquilos. Olhos que espionam, mas não a veem; que se fixam, mas não compreendem as  negativas sucessivas; que importunam, sem nada descobrir. Olhos que retiram a paz do anonimato desejado.

  E depois, a indesejada voz; pouco ouvida, é verdade, porque os ouvidos bastante intuitivos, não a reconhecem com vontade. 
  Invasora, forçada, perturbadora, que visita seu silêncio, que polui seu mar de ondas calmas ou agitação acolhida. Um som oco, que degrada sua natureza de liberdade.
 Voz que fala sozinha, o que quer e quando quer, que rouba qualquer chance de resposta; que sequestra o som das vozes ao redor, que encobre e emudece a quem diz querer muito ouvir.
  Uma voz-machado que ceifa qualquer possibilidade de expressão contrária. Ditadura do desejo que não deseja o desejo do outro, mas o próprio desejo e a sua invenção, a partir dele. Imposição indelicada e opressora.   

  Um hábito ruim de ruir a tranquilidade de uma pessoa que é vista como pote de margarina, cadeira, caneta, lápis, chinelos, pássaro de porcelana em cima da estante.
  Repetição inoportuna e monótona de tentativas de aproximação, a mão continua a tentar alcançar uma presença que não é acessada apenas por uma vontade unilateral. Quem não entendeu essa dinâmica? O mundo talvez se recuse.
 
  Intentos corrosivos que fragilizam as estruturas tão arduamente erguidas, que testam a força dos ombros que nada querem carregar, involuntariamente.
  Gestos que descendem desde muito e durarão não sei até quando, porque mudam os donos, mas os olhos sempre voltam; é assim, dizem, a humanidade.
  O quão humana ela não é, que não participa das investidas, só emudece no centro do alvo, torcendo para que a flecha não chegue até ela? Desviar, calar, ignorar o peso dos olhos negros e da voz indesejada.

  Dói sempre não poder ser o que se é, escudo frágil, permanentemente erguido. Insegurança por cada luz acesa, cada bandeira desfraldada, cada palavra dita, escrita e defendida. Expressões medidas, confinadas, postas à prova de mal entendidos e desgostos.
  Dez mandamentos, inscritos em pedra dura: 1) não ferir a quem fere; 2) sorrir aos desconhecidos; 3) sorrir aos conhecidos; 4) sorrir aos conhecidos e desconhecidos incômodos; 5) aceitar a dança para não magoar a mão ofertada; 6) falar somente amenidades, porque não vai ser ouvida, de verdade; 7) encolher-se nos assentos de transportes públicos, porque a sua natureza é diminuta, se não é, deveria; 8) não atrapalhar os que querem velocidade, trafegar somente na faixa da direita; 9) não dizer que sabe, mesmo que saiba; 10) não ser. 

  Conhece o medo. Remoto descontrole. Era um medo de não poder ir além dos cercados da casa. Nenhuma proteção é o bastante contra a insegurança.
  Lembra-se de Francisco, dando socos no vidro do ônibus e ela envergonhada do pavor que era ser alguém para ele. Parece uma loucura ruim, de novo. Os socos alcançando depois de tanto tempo, os olhos que não são verdes como os de Francisco, colocando-a à prova mais uma vez. Olhos escuros, agora. Pesados de outrora.
   Parece estar sempre num treinamento infinito; um obstáculo, depois do obstáculo e outro obstáculo depois de outro. Parece não ter fim a história de batalhas do seu gênero neste mundo. Deve estar preparada; sempre.



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