sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

A primeira vez em que eu não estive em mim

  A primeira vez em que eu vi a neve eu estava em outro país, era fevereiro, na cidade da minha casa era um calor escaldante, mas eu sentia frio noutro lado do hemisfério.
  A primeira vez em que eu vi a neve, meus lábios estavam gelados, a ponta do meu nariz estava dormente, mas eu pensava muito no calor que não chegava ali. Eu estava rodeada por um infinito de brancura bonito e melancólico, mas a memória visitava a noite morna na qual eu não dormiria. Eu não queria ir embora, mas é como se eu nunca tivesse chegado.
  Eu via a neve, deixava ela molhar as pontas do meu cabelo para materializar o encontro, mas estava partida, vivendo o passado recente das noites tropicais, enquanto os flocos de gelo caiam sobre a minha cabeça. "A neve é mais pesada do que eu imaginava", eu pensava em escrever nos postais que eu nunca comprei.
  A primeira vez em que eu vi a neve, eu chorei porque vi a neve e depois chorei, porque chorei por ter visto a neve. Ninguém viu e eu não saberia explicar um choro desses.
A primeira vez em que eu vi a neve, eu não estava lá completamente.

  A primeira vez em que eu me preparei para assistir a um eclipse, alguém a quem eu amava tinha sua vida apagada em outra cidade. Não fui ao velório, mas alguns minutos de escuridão durante o dia pareceram nos aproximar. Eu olhava para o céu, com um óculos de papel celofane colorido que eu tinha feito em casa e sabia que uma saudade imensa interrompia também um pouco da luz na minha alma.
  A primeira vez em que eu assisti a um eclipse, eu não entendia de astronomia, mas sentia o que era ter uma presença encoberta para sempre, mesmo que o escuro durasse somente alguns minutos. Eu olhava para o céu, para o sol, mas tudo o que eu podia ver não ficava em horizonte algum.  
  A primeira vez em que um eclipse passou pela minha vida, não acontecia no céu que eu insistia em olhar.

   A primeira vez em que eu vi o mar, eu também estava em um lugar que não era o meu lar. Não estava sozinha, mas me sentia completamente solitária, porque o mar era muito maior do que eu tinha imaginado. Não sabia como aproveitar toda a beleza, por qual dos lados eu deveria experimentar entrar, por exemplo. Eu tinha muito medo de fechar os olhos e não ver mais o mar. No primeiro encontro, eu senti a responsabilidade da primeira visão.
  A primeira vez em que eu vi o mar, eu era pequena, mas sabia que eu nunca esqueceria da sensação de vê-lo pela primeira vez, eu fingia um olhar ordinário, mas carregava toda aquela imensidão de medo, desejo e alegria.
  A primeira vez em que um oceano invadiu a minha vida, eu suspeitei que a felicidade podia também angustiar. E se acaba, por que acaba? Eu estava distante de casa por muitos quilômetros e era feliz ainda.

  A primeira vez em que eu fui ao cinema, eu não sabia quase nada da experiência. Não perguntei muito sobre o lugar, embora tivesse muita curiosidade, nem sobre as pessoas que também estariam lá ou o que era assistir a um filme junto com desconhecidos. A primeira vez que eu fui ao cinema, eu coloquei uma roupa bonita, minha mãe colocou uma pulseira de prata, com meu nome, no meu punho esquerdo e eu não quis incomodar ninguém com a minha ignorância sobre cinemas.
  A primeira vez em que eu fui ao cinema, os bancos eram vermelhos, a sala cheirava a mofo e uma tela maior do que eu tinha imaginado se iluminava mais enquanto as luzes dos corredores se apagavam. Ninguém se assustou com as luzes, então era assim ir ao cinema: luzes que mudavam de lugar.
  A primeira vez em que eu  fui ao cinema, eu não assisti quase nada do filme, mas assisti às pessoas que assistiam ao filme. No escuro, os rostos ficavam iluminados pela tela, alguns sorriam, outros dormiam, mas a maioria ficava muito atenta às imagens imensas projetadas em uma tela branca. Enquanto eu olhava os rostos, eu segurava a pulseira com o meu nome e passava o dedo sobre as suas letras para ter certeza de que era eu quem estava mesmo no cinema.

  A primeira vez em que eu assisti uma desesperança eu não soube ressuscitar nenhum sonho. Não tinha um curso de primeiros socorros, não sabia se usava o extintor da parede ou o martelo na caixa de vidro. Fiquei muda, mesmo que achasse que devia falar. Queria ouvir, mas as palavras de um desesperançado são quase sempre ininteligíveis; ou não existem ou não deveriam sair em voz alta.
  A primeira vez em que  vi os olhos opacos de um desesperançado, eu movi os meus olhos para os pés dele. Não podia encarar uma desesperança; não sabia se era contagiosa ou se tinha cura.
  A primeira vez em que eu desconfiei de uma desistência eu corri, não ofereci minha mão no penhasco com medo de não suportar o peso e também cair.
  A primeira vez em que a desesperança pousou no travesseiro vazio eu não a espantei com uma vassoura. Embora eu continuasse na cama, minha mão abria uma porta e, sorrateira, a minha covardia me levava para fora no meio da noite.

  A primeira vez em que eu vi o amor, eu também não estava em mim. Assisti ao amor e pensava quem eu era antes de estar nele, o que sentia, agora, a outra que não estava aqui? Eu não podia molhar a ponta do cabelo com ele, não tinha óculos com papel colorido para vê-lo melhor, eu não sabia por qual lado entrar para me banhar nele, não conseguia fingir banalidade diante dele, não tinha uma pulseira de prata com meu nome para ter certeza de que era eu quem estava sob a sua luz e fui covarde quando me perguntaram o que era.

  A primeira vez em que eu vi o amor, era maio e não nevava, mas fazia um frio cinza, as minhas mãos estavam frias e a ponta do meu nariz com menos sensibilidade. Eu sentia o inverso do eclipse, a minha luz parecia ser descoberta. Podia vê-lo de longe, mas quis molhar os meus pés, com muito cuidado, na sua beleza. Ninguém mais se sentava ao meu lado e eu olhava, somente, um  rosto. Eu pensei em sair pela escada de emergência, quando a desesperança aparecesse, mas sabia que não sairia sozinha, eu puxaria uma mão para longe dela, desta vez.
  A primeira vez em que eu vi o amor, eu sabia que carregaria a lembrança do primeiro encontro na mesma bagagem onde eu guardo os postais que eu nunca envio, mas não me pareceu pesado, incômodo ou inútil. A primeira vez em que eu estive no amor eu também estive fora de mim e pude assistir o meu rosto sorrindo, no escuro da sala, sob um feixe de luz da tela.

 



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