domingo, 30 de setembro de 2018

Importante manter distância do domador provável

  Estamos separadas por um universo de experiências impossíveis de serem divididas, caminhos que pouco se encontraram, canções que ela ama e eu nunca ouvi, as minhas músicas que eu não me lembro de mostrar para ela, as feridas que eu não vi quando lhe fizeram, mas que eu ajudei com os curativos.
  Estamos apartadas, num mesmo mundo, por escolhas que ainda não conseguimos explicar, andamos de mãos dadas por muitas ruas, mas nos soltamos quando o tempo da travessia é diferente para cada uma; dividimos a sobremesa, mas sou eu quem lava os pratos sozinha quando ela vai embora;  levantamos algumas mesmas bandeiras, outras não; completamos as frases uma da outra, mas, ainda assim, não temos certeza do que cada uma disse ao final do dia. Sobrevivemos há muito, mas nos distanciamos um pouco mais desde que ela começou a afastar-se do que eu sabia dela.

  A intenção de qualquer escolha é apenas a porta de entrada para um labirinto, é o primeiro impulso para as sucessivas decisões que só serão confrontadas depois de cada passo. Um sim, um não, um silêncio só serão definitivos à primeira questão, depois de cada resposta aparecem outras perguntas; não acabam, não acabam nunca.
 Eu não sabia quando ela partiu, ela talvez não quisesse saber, mas estou à porta do labirinto que ela entrou e eu não posso segui-la nem para iluminar os seus caminhos, então eu só grito, porque ainda tenho esperança nos ecos:

- Mantenha distância das verdades deles, dos deuses que eles querem que você também idolatre, lute contra ou ao lado dos seus próprios; você ainda se lembra deles. Não se arrisque a apagar as suas velas para acender as deles, o fogo pode ser escasso em ambientes com pouco oxigênio, por isso também confira se as janelas não estão completamente fechadas, vai precisar de ar e de algum refúgio para quando os seus olhos não saberem mais buscar novidades nesta casa, no lado do hemisfério onde você resolveu estar.
  Mantenha distância dos quadros que eles pintam e querem colocar na sua sala; agradeça, mas não os dependure, a sua parede pode não suportar o gosto deles, que eles querem que também seja o seu.

  Mantenha as suas mãos próximas da terra, das plantas, dos animais, das formas de vida que parecem muito distantes da sua, mas que não oferecem perigo se você se aproximar com delicadeza. Não se distancie do que há de mais selvagem na sua natureza: um urro, um latido, patas que socam o próprio peito, o cio, a mordida em defesa, não deixe que domestiquem suas expressões, elas são a sua existência. Quando interrompem o seu grito, decepam uma parte sua e você não percebe porque não vê sangrar.
  Mantenha as mãos deles distantes dos seus sonhos, eles podem querer apagar aqueles que você ainda desenha os contornos. Mantenha-se sempre próxima do seu último devaneio noturno, ele pode ajudar a conduzir muitos dos seus dias.

  Mantenha a sua calma doce do sono da infância e a aprendida com os anos de experiência, mas não deixe que te façam morna, apática, condicionada e conduzida; é diferente, você saberá suspeitar.
  Mantenha suas paixões, não abra mão do seu time, prato, música, partido, programa, lugar, amigo,  roupa, ídolo, inspiração, loucura.
  Mantenha distância dos arrependimentos, dos ressentimentos, da culpa pelo sim ou pelo silêncio; o não poderá vir na próxima questão. Mudar o rumo é sempre possível, só voltar é que nem sempre será.

  Mantenha os seus olhos bem abertos, os músculos alongados, os amigos alegres que a façam sorrir, as flores nos vasos em cima das mesas da casa, as janelas abertas e as portas destrancadas, até às oito da noite. Mantenha pálpebras e maxilar relaxados quando precisar descansar e o seu livro favorito no criado-mudo, mesmo que leia somente uma página por dia; ele também ajuda a lembrar-lhe de quem você é.
  Mantenha distância dos clichês das revistas femininas dos consultórios médicos: "Relacionamentos precisam de renúncia", "Como conquistar os amigos dele, a família dele, ele"...
  Mantenha, sobretudo, sua insanidade e asas, elas a trarão de volta a você quando puder se lembrar o quanto esse voo é libertador. Vista sua camiseta lilás, desenrole a sua bandeira guardada e grite para eles o seu não.

  Não sei se ela pode me ouvir, talvez meus gritos ainda sejam para mim; estamos cercadas por paredes, corredores e esquinas, a cada passo nos aproximamos mais ou nos despedimos uma da outra e, quem sabe, de nós.
  Queria que soubesse manter distância de quem é incapaz de amar uma mulher selvagem. E o mais importante é o meu último grito:
- Mantenha distância do domador provável. Fique próxima de quem admira seus rasantes mais corajosos.
 


Nenhum comentário: