terça-feira, 3 de abril de 2012

Das (inevitáveis) despedidas

  Hoje, enquanto caminhava pela manhã, assisti a uma das mais comoventes cenas (uma não-ficção) da minha vida. Já estava fazendo o circuito da volta, quando ainda longe, vi um cachorrinho lindo (acho que era um lhasa, embora não tenha certeza, porque não sou uma exímia conhecedora de cães) que fora da coleira, arriscou-se a atravessar a avenida intensamente movimentada e, estando ainda muito próximo à calçada, foi violentamente atropelado.

  O carro que o atropelou seguiu seu destino, deixando uma moça desolada, um cachorrinho gravemente ferido (pelo menos foi o que me pareceu) e, logo atrás da moça, um menininho (que me pareceu ser o filho da tal moça) inconsolável. O garotinho de uns 4 anos, no máximo, gritava, chorava e se desesperava agachado ao lado do seu amiguinho canino. Enquanto me aproximava, a moça pegou o corpinho mole do cão e junto do menino foram em direção a um carro, ela colocou o garotinho no carro, o cachorrinho no colo dele (como ele pedira) e seguiram, provavelmente em busca de socorro para o cão.

  É claro, que o estado do cachorro me sensibilizou profundamente (ensaguentado, com o corpinho inértil. O carro acertara em cheio a carinha do delicado animal). Mas, o que mais me comoveu, foi assistir à dor do menininho, que certamente jamais esquecerá aquela cena (10,20, 30 anos podem passar e, ainda que, o cãozinho se recupere, o garotinho ainda  se lembrará, com alguma dor, do triste acontecimento). A moça, mãe do menininho, estava desde o atropelamento, visivelmente atordoada, mas quando ela vira o desespero do pequeno garoto, ficou claro que ela estava ainda mais sensibilizada com a situação, chegando a derramar algumas lágrimas, provavelmente um pouco pelo cachorro, e ainda mais, pelo garoto. A situação era a seguinte: o menininho sofria com a dor do cãozinho amigo e a mãe sofria com a dor do filho, pelo cachorrinho. Eram três personagens unidos pela dor, pela lealdade e, principalmente, pelo afeto que se estabelecera naquele pequeno círculo.

  O carro partiu rapidamente e eu fiquei na avenida, sem nenhum desfecho para a história. Enquanto voltava, agora mais devagar do que nunca, pensava no menininho, no seu cão e na sua mãe. Lembrei quando perdi o único animal de estimação que tive e da dor da iminência da sua partida. Teddy era o nome de um canário belga que meu irmão ganhou de uma tia da minha mãe, que o recebeu sob o juramento de cuidar dele todos os dias, sem exceção. Promessa quebrada nos primeiros meses, depois que a "novidade" passou a ser velha. A escolha do nome, não me lembro bem, mas suspeito que eu  a tenha feito, dado ao meu histórico de "mal gosto" na escolha de nomes para animais de estimação (quando por algumas semanas cuidei de duas gatinhas que nasceram no porão da minha casa, eu as batizei de Diana e Daiana, mas esta é outra história...). Logo, meu irmão passou a ser um relapso dono (com a higiene e alimentação do bichano), minha irmã mais velha que nunca se afeiçoara muito aos animais também se eximiria de qualquer obrigação. Então, eu e minha mãe dividiríamos os compromissos e a afeição pelo frágil bichinho. Teddy era um pouco da minha mãe (porque eu permitia), mas era "mais meu", eu achava (coisa de criança mimada). 

  E cuidar do Teddy era uma das minhas "obrigações diárias" favoritas. Limpar a gaiola (que quando ele crescera, foi substituída por uma um pouco maior. A qual eu chamava de "mansão do Teddy". -  E, então Teddy, o que acha da sua mansão? Eu perguntava enquanto substituia a água do seu bebedouro, adicionava a "vitamina" em um dos compartimentos da gaiola e o alpiste no outro. Posteriormente, lavava cuidadosamente sua banheira e enchia com água fresca, que ele mergulhava, antes mesmo de eu terminar de ajeitar a "mansão". Eu ainda tirava o fundo removível da gaiola, o lavava, secava e, conforme instruções da minha mãe, forrava com um jornal. Que eu nunca escolhia ao caso, nunca colocava classificados ou o caderno de economia, escolhia fotos bonitas, que eu achava que seriam do gosto do Teddy (uma árvore ou uma floresta inteira; uma praia ou mesmo, uma foto com outros animais, para fazer companhia ao meu canarinho; vez ou outra, escolhia algum artista, nos jornais, para visitar o Teddy na sua mansão. - Teddy, hoje a Cláudia Raia veio lhe fazer companhia!).

 O caso, é que eu amava mesmo meu canário amarelo, sua gaiola ficava em uma varanda, em frente a janela do meu quarto; ao acordar abria a janela e muitas vezes era para ele o meu primeiro "bom dia". Um dia acordei, levantei, abri a janela e soltei o meu sonoro :- Bom dia Teddy! E o que eu vi na gaiola me deixou desolada, meu Teddy estava em um canto da "mansão", recolhido, com olheiras profundas (sei que parece estranho um passarinho com olheiras, mas ele tinha sim, abaixo dos olhos uma cor bastante escurecida, então era olheira...). Relatei o "caso" a minha mãe, que já havia percebido, mas simulava alguma naturalidade, para não me alarmar. Fiquei a manhã inteira em cima de um caixote, que me colocava na altura da gaiola do Teddy, depois de todos os procedimentos de limpeza, para fazer companhia e acompanhar seu restabelecimento, e embora eu não enxergasse nenhuma melhora, minha mãe insistia que o "quadro" era favorável.  Já temendo que o canarinho não se restabelecesse, minha mãe sugeriu um passeio até a casa de uma tia dela (não a doadora do Teddy, mas outra, cuja casa ficava em outro bairro).  Aceitei, ainda que um pouco desconfiada, sob a promessa, que se ao chegarmos do passeio o Teddy ainda estivesse "amuado", nós o levaríamos ao veterinário (Ingenuidade minha acreditar que diante de recursos tão limitados, na época, poderíamos pagar um "médico" para meu canarinho), de qualquer forma, convencida de que meu Teddy ficaria bem, seguimos para a casa da tia.

  Fui ao passeio também, porque a tal tia da minha mãe era a minha favorita; alegre, divertidíssima e sempre cheia de elogios e cuidados comigo. Além da minha empatia pela tia, em sua casa morava uma das minhas melhores amigas na época, uma prima da minha mãe, da minha idade (3 dias de diferença), que orfã de pai e mãe (desaparecidos numa tragédia sem igual) e separada dos 4 irmãos, recebia abrigo da tia. Minhas visitas à casa, geralmente, eram muito alegres, para mim, que gostava da casa, da dona dela e da sobrinha orfã; e para a ruiva (minha amiga era ruiva, foi a primeira pessoa ruiva que conheci), que não tinha muitas companhias da sua idade e que, confiava os seus tristes relatos a mim. A Ruiva, era uma menininha que mesmo tão pequena e frágil, já tinha uma vida fundamentada em "faltas", além dos pais e irmãos, faltava-lhe explicações para a tragédia que se abatera em sua vida, um lar, uma vida "de criança" e, principalmente, afeto. Eu, criança, meio por ingenuidade e meio por egoísmo lamentava a situação do meu Teddy para a Ruiva, que era o retrato de um personagem dramático de Dickens. Ela havia enfrentado as piores perdas do mundo e eu me abatia por uma perda, que ainda nem se concretizara. Passamos a tarde juntas e eu já me esquecia do temor da despedida do meu canarinho. Despedi-me da Ruiva, agora otimista, para a volta a minha casa, ao meu Teddy.

  Quando cheguei  em casa, a situação era ainda pior, cobrei a visita ao veterinário, prometida por minha mãe que a protelou para o outro dia, já que era bem tarde. Me fixei novamente no caixote e toda vez que meu Teddy fechava os olhos eu o "cutucava" sutilmente, temendo que ele não acordasse do seu sono; e por vezes eu o acordara, até ele não acordar mais. Chorei a noite inteira, praguejei contra minha própria mãe, que não o levara ao veterinário, até domir em um sono profundo; acordar no outro dia muito triste, ligar para um primo (que a família chamava carinhosamente de "Maninho") para então, planejarmos o  "ritual da despedida". Meu canarinho foi enterrado no quintal da casa do meu avô, após a cerimônia realizada e assistida por mim e por Maninho, a seriedade do ritual, foi interrompida pela briga entre eu e meu primo, que curioso, queria desenterrar meu Teddy e eu, tentando impedí-lo a todo custo. Ele prometeu "respeitar" minha dor e ir embora, mas ambos passamos o dia perto do quintal, eu "protegendo" o descanso do canarinho belga e ele esperando uma oportunidade de desenterrá-lo...Anos depois Maninho, já crescido, se lembraria alegremente do "caso do passarinho".

  O Teddy não existe mais, nunca mais tive outro animal de estimação. O Maninho também se despediu deste mundo, muito precocemente. A Ruiva se casou há anos atrás, mudou-se de estado e nunca mais a vi, nem mantivemos contato. Hoje de manhã, talvez um garotinho tenha conhecido a dor da despedida, mal sabe ele que outras tantas virão...e essa, talvez seja das experiências da vida, que nunca se "aprende a fazer doer menos". 


Nenhum comentário: