terça-feira, 12 de junho de 2012

De uma descoberta

  E pensava que a falta de estima por si mesma sempre a afastaria da falta de amor alheio. Como se o despreendimento consigo a prevenisse do desprezo do outro, e assim foi vivendo. Consigo era muito distraída, dava-se pouca atenção, recusava, inclusive, os elogios, achava-os todos pouco sinceros. Os seus defeitos sabia-os de cor, tinha uma lista deles sempre a mão e não se intimidava em mostrá-los a quem quer que fosse, quanto menos íntimo o sujeito fosse, mais ela exibia-os sem pudor. Quanto as qualidades, pouco, muito pouco pensava sobre elas, não acreditava muito que as tinha, "mas devia ter, todo mundo tem", mas preferia não se "prender" ao que era bom em si, a vaidade que poderia despertar nela mesma a deixava aterrorizada. Fazia o tipo "sincera", achava que destacar qualquer de suas qualidades poderia trazer frustração ou decepcionar, um dia, quem por elas se atraísse.

  Nunca exigia lugar melhor, nem ao menos pedia. Achava que só tinha o que, de fato, merecia; achava que respeitar a escolha alheia era nunca requisitar nenhum tipo de atenção e por isso parecia fria e por isso, tantas vezes, a chamavam de distante. Os fracassos eram sempre fruto do seu pouco empenho, da sua falta de talento, da sua desastrada tentativa de acertar; já o sucesso justificava-o como sorte, como benção divina, como fato extraordinário. A moça era tão cuidadosa com o seu desapego por si mesma, que orgulhava-se muitíssimo, veja que contraditório, da sua modéstia. Falsa. Aquela modéstia era falsa. Para a moça faltava amor por si e não orgulho.

  E se tivesse mais orgulho de si e se seu afeto tão verdadeiro, tão puro, tão genuíno fosse dispensado para si mesma? Não teria atraído exatamente isso? Ela era o modelo. O desafeto alheio era reflexo do seu próprio. Como poderia desejar o melhor, se não se dava e não sabia pedir o melhor? Pensou em tudo isso, no início, com tristeza, mas depois veio uma euforia, um louco desejo de declarar bem alto, gritar, gritar muito que o enigma fora desvendado, que a descoberta da sua vida estava agora a sua frente!
Agora, olhava mais uma vez para o teto branco, aquele que a meses era sua paisagem mais constante. Olhava, refletia, agora o teto tinha cores, das mais variadas, era um arco-íris, fraco, mas era pelo menos, um esboço de arco-íris. Perguntaram-lhe se desejava água. Não sabia se sentia sede, por isso pediu desculpas pelo trabalho. Pensou que esta era a última vez que se trataria com tão pouco respeito, era a última vez que pediria desculpas por ser quem era, nunca mais se sentiria tão sem valor. Gritou: - Moço, moço. A voz enfraquecida ganhara certa energia. - Por favor, eu estou com sede sim, pode me dar água.

  Sozinhas novamente: a moça e a sua grande descoberta. Pensou que merecia amor, o seu, o do outro, o do mundo inteiro. Pensou que pena não era amor, que omissão não era liberdade e que a modéstia deveria ter algum limite. O que faria agora com tudo que descobrira naquela tarde cinza de agosto? Tinha tempo? Talvez não. Achava que não. Mas não se lamentou, não se arrependeu do passado que não podia modificar, não planejou nada para o futuro, porque este já tinha o seu fim decretado. Chorou, sorriu e, principalmente, sentiu um imenso orgulho da sua sensibilidade e inteligência, havia encontrado hoje, numa tarde qualquer, de um agosto comum a resposta de uma vida inteira. Era o amor, o amor que sentia por si mesma era o que agora lhe aquecia todo o corpo enfermo. Se sentia saudável, promissora, alegre, mas de uma alegria profunda mesmo, achava-se bonita, inteligente e amada, sabia-se muito amada. Deu um suspiro satisfeito, tirou trezentos quilos dos ombros e foi-se a amada.

  Hora do óbito: 17:55; A causa da morte segundo o atestado de óbito fora "falência múltipla dos órgãos". Mas a verdade é que a moça morreu de amor e autoestima extremos, depois da revelação de uma vida inteira, sobrecarregara o corpo frágil e debilitado; os seus órgãos nunca haviam sentido tamanha energia e surpreendidos não resitiram. A alma foi muito maior que o corpo. E foi o cadáver mais bonito de todo o hospital, de todo o necrotério, de todo o cemitério. Seu enterro foi dos mais belos e delicados, havia no ambiente uma alegria inexplicável, nada ali era mórbido, parecia, pelo contrário, uma abundância de vida. Para os desolados, havia o consolo da morte parecer o melhor caminho para a moça sofrida. Achavam que talvez a própria vida e a sua recente enfermidade a haviam tirado a alegria de viver . Não era verdade, a moça adorava a vida, adorava tudo na vida, só não sabia muito bem o que fazer com ela. Descobriu. Não houve tempo, mas não lamentou a moça, não se arrependeu, só morreu cheia da vida que descobrira.


Nenhum comentário: