quinta-feira, 17 de setembro de 2015

O crescer é demorado, o amor é que ajuda a gente

  Nos conhecemos desde um tempo em que as nossas horas duravam muito, tudo demorava a passar, mas quando acabava a gente lamentava por não ter durado mais: as festas, os filmes, as aulas aos sábados, os circos baratos no bairro.  À tarde a gente crescia muito e no dia seguinte, num novo  encontro a gente tinha certeza de que éramos já outros. Grandes. Quase grandes o suficiente para sermos os donos do nosso próprio tempo. Eu queria parar de ir à escola logo e ele queria parar de usar as roupas que a mãe escolhia.

  Ele descia dois quarteirões antes da escola só para me encontrar na praça e irmos juntos. Passávamos horas conversando, rindo, sonhando ou olhando para céu. Trocávamos nossos relógios, canetas e mochilas e enquanto isso, a gente fingia ser dono de outra coisa, diferente do que era mesmo nosso. Dividíamos o pacote de biscoitos, as atividades da escola, as descobertas diárias, possibilitadas pelos livros - que ele tinha - pelos programas de TV, por experiências nossas ou dos outros que gente ouvia falar e compartilhava. 

  Quando a vida andava esquisita, quando era difícil qualquer definição de um sentimento que sobressaísse, eu fazia uma poesia e ele um desenho, mas a gente nunca  perguntava sobre o que era, nem o que o outro estava sentindo quando fez, só olhava, lia, demorava os olhos nos traços e dizia que era mesmo muito bonito e ficávamos um do lado do outro, só com as nossas belezas reveladas. E, acho que a nossa amizade se fortalecia exatamente aí, quando não nos explicávamos, quando não tínhamos que buscar palavra nenhuma  para o que éramos ou desconfiávamos ser.

  Eu era mais alta do que ele, mais leve e inventava mentiras com mais facilidade; ele era mais sociável, mais inteligente com os números e muito mais melancólico. Ele não gostava de fantasiar, mas entrava nas minhas criações quando eu requisitava, eu detestava tristeza, mas me recolhia com ele quando sorrir era demasiado difícil. O amor tem dessas proezas, ensina a gente a aceitar e compartilhar o que não é da nossa natureza, só para adentrar um pouco mais no universo de quem a gente quer muito bem.

  O tempo que passava sempre tão lento, aos poucos, foi mudando de intensidade. Perdi meu relógio com pulseira de três voltas, imitação de couro marrom e ele abandonou o seu presente, de um primo que tinha viajado para Disney no aniversário. Não fomos nunca à Disney. Eu mudei de escola, o pai dele sumiu. Crescemos ainda mais neste período. Não nos víamos mais diariamente, mas falávamos ao telefone algumas vezes por semana, depois uma vez só, mais a frente,  uma vez por mês e, então, somente nos nossos aniversários; até um dia não nos telefonarmos mais.

  Depois de alguns anos, ele ligou para minha casa, não falou por onde tinha andado, nem se sentia minha falta ou que queria me ver. Só falou uma frase e desligou o telefone. Fiquei a lado da mesinha, com o telefone no gancho, olhando para o aparelho na esperança dele me chamar de novo, mas não chamou. Me contou um segredo que eu já conhecia, desse tempo em que não falávamos de sentimento, mas em que eu podia ver nos desenhos dele e ele ler na minha poesia. Tentei falar com ele algumas vezes, mas só me atendeu quando se sentiu preparado. Nos encontramos e ficamos lado a lado, ele chorou por algumas horas, disse que tinha medo do que era, de nunca ser aceito, de magoar a mãe e de nunca ser amado. E eu pude, pela primeira vez, dizer mesmo, para além de gesto ou escrita, que o amava para sempre. Depois olhamos o céu e crescemos ainda mais. Ele passou a escolher as próprias roupas. 

  Continuamos a nos falar somente nos aniversários, até que chegou a minha vez de romper com o nosso distanciamento polido e eu precisar muito dele. E então, fui eu quem chorei, tive medo, duvidei e também soube que era amada, completamente vista por alguém e conhecida. Neste mesmo tempo parei de ter que ir à escola.

 Passamos muitos períodos sem nos vermos, sem termos um cotidiano partilhado, visto ou sabido, mas eu sempre estive certa de que ele sabia de mim e do tempo que a gente crescia à tarde. Dele que nem sempre eu sei, guardo os desenhos que ele fez e nunca precisou me explicar, a revelação gritada ao telefone e a coragem que ele aprendeu a buscar. 

  Há seis meses não nos falávamos, ontem eu precisei do silêncio dele e foi ele quem me ligou e, mais um vez, dividiu o fardo da incompreensão. E nessas fases estranhas, de sentimentos sem nome ou classificação muito acertada, tudo o  que a gente precisa é de alguém que nos olhe sem pretensão alguma de entendimento. Alguém que ligue quando você não quer falar e que, por isso, fale para que você se sinta acompanhado. Ontem ele me ligou e soube que eu não podia falar, me contou sobre um filme que assistiu, do qual não se lembrava o nome, só para que eu o sentisse ao meu lado. E, antes do final da ligação, crescemos mais um pouco. Ele usando a roupa que bem quis e eu há anos sem aparecer na escola. O crescer dura a vida inteira, tenho desconfiado, o que ajuda na função que nunca acaba é o amor que nos conhece, consola e não pede explicação dos poemas que gente escreve. Dividir o silêncio, não tentar entender ou explicar nada, faz do tempo um lugar melhor de passarmos as tardes.