sábado, 30 de julho de 2016

Isto é uma despedida

  Chegou aos noventa. Achava que não passaria dos cinquenta; ultrapassou o câncer, duas safenas,  a morte de um filhinho antes de completar os dois anos nos seus braços, a despedida do companheiro de quarenta e seis anos de vida partilhada. Chegou a essa idade misteriosa, estranha e improvável. E com uma força inesperada, chegou sem ver o fim das outras idades, chegou com a menina, a mocinha, a mulher adulta, a madura, a idosa, com todas as suas outras personas acompanhando-a, espantando a solidão dos dias de inverno. Todas as fases dela, como numa matrioska, aquelas bonecas russas, morando dentro dela, bastava avistar um vendedor de algodão doce na rua e a menina se libertava das outras bonecas maiores. Arrancava a casca da idosa, da madura e da adulta e saltava alegre para, de novo, experimentar a leveza do açúcar em nuvem rosa. Todas as idades que moravam nela, podiam se libertar num instante qualquer. A mimada, a chorona, a atrevida, a sensata, a grata, todas a acompanhavam até a feira das quartas.

  Chegou a essa velhice espantosa, gostando muito da vida, mas sem compreender a sua permanência estendida a cada ano. Quando o único filho, ainda pequeno, a abandonou, mesmo que ela soubesse que a má-formação do pequenino abreviaria sua vida, ela desesperou-se bastante na hora chegada, achando que o melhor seria que terminasse ali com ele também. No último suspiro, do seu menino, se ela pudesse emendar um derradeiro dela. Mas tinha o companheiro, amor cheio de delicadeza e generosidade, homem de fragilidade maior que a dela, foi ficando por ele, exercendo sua maternidade naquele homem adulto tão dependente dela. Foram um do outro, cada qual com os seus bonecos interiores, por mais de quatro décadas. E quando ele partiu, ela já era muito mais forte e apegada à vida. Achou que ficaria mais algum tempo, talvez vivesse até os setenta, mas foi indo além e nada podia fazer a não ser seguir a corrente hodierna.

  Mas as suspeitas de uma idade limite, de um tempo próximo a vencer, deu a ela uma estranha mania: a das despedidas sucessivas. Achava que era seu último ano, mês, semana e até dia. Morreria de algum problema cardíaco, porque tinha o coração frágil de herança. Os pais morreram infartados, o irmão mais velho e a irmã caçula tiveram o mesmo veredicto na certidão de óbito, ela mesma já tinha se submetido a duas safenas, as artérias eram estreitas, um dia ou outro se fechariam, tinha isso de certo.

  Então, quando uma aura de despedida se instalava nela, ministrava aos seus alunos a aula mais magnífica, mais questionadora e profunda. Do tablado de madeira, na salinha de reboco descascado, com um pedaço pobre de giz, no abafado das telhas de zinco, ela brilhava gloriosa e a plateia arrebatada levava como lição do dia, a força suave da professora, a filosofia humanista dela, a sua inteligência mais generosa. Chegava em casa e lembrava-se de um poema inteiro, daqueles enormes, do Drummond e o interpretava para o companheiro, seu devoto mais antigo, com um sentimento desvairado, cada palavra saída como brasa, nos olhos faíscas de vida. Abraçava a vizinha, passava a mão nos cabelos da filhinha dela, dava-lhe umas balas coloridas e desejava o dia mais bonito para as duas. Ligava na portaria só para perguntar ao seu João da mulher e dos filhos dele. Gargalhava para a vida toda que passava a sua volta. Não fazia distinção, não escolhia a quem ofertar o seu melhor. Ela amava mais e era mais amada pelo amor que oferecia. Saía logo cedo, enxergando tudo com uma visão sem igual, porque alcançava detalhes, profundidades, espaços que os olhos comuns não seriam capazes de conhecer. Saía para o seu último dia e com mais convicção, especialmente, quando o espectador dos seus poemas partiu numa manhã ensolarada de dezembro.

  Foi aprendendo a preencher seus dias com novos gostos e hábitos. Da escola já tinha se aposentado, do amor de vida se despedido, seu João foi para outro prédio, a filha da vizinha se casou e a mãe estava enlouquecendo da velhice. Todos iam e o coração dela não obedecia ao histórico familiar. Era frágil desde o seu nascimento, mas era inacreditavelmente resistente, o teimoso. Não deixava de viver, aprender coisas novas, aumentar sua biblioteca preciosa, nem de amar deixava. Chegava aos impressionantes noventa, com despedidas cada vez mais frequentes e menos espaçadas. Obedecia ao chamado de uma morte que ela não sabia, mas era distante do seu alcance. Tinha, a cada dia, olhos mais e mais de despedida suave, estava condenada a viver no tempo de ir embora.

 O olhar dos condenados é santo, a vontade de entender o outro, levar consigo uma parte dele ou deixar uma sua nesta vida, de se conectar a uma instância mais intima de cada personagem da sua história. Ela dava presentes, escrevia bilhetes comovidos, era grata a tudo e a cada pessoa, saía com os olhos marejados e um meio sorriso nas margens dos lábios. Assistir a um condenado conformado com o seu fim é quase tão bonito quanto ser o próprio; aquele que sabe que vai e não resiste; só quer fazer o melhor com tempo que lhe resta.

  Teve mais de uma centena de despedidas. Ninguém nunca soube de nenhuma delas. Era ela solitária abanando a mão e deixando uma lágrima quente em cada afeto. Eles, se sofressem, só de saudades, porque pelos adeuses ela se encarregava mística, reservada e metódica.  Que vida portentosa a daquela mulher.
  Fico pensando nesse amor que se instala na gente na despedida iminente e se ele chegasse quando a resolução fosse ficar?
- Escolho o amor porque estou aqui e vou ficar.
  Era o que podia mesmo ser. Mas, por algum motivo deixamos para o fim, o que de começo, seria mais terno.

  Esta é uma despedida, faço como a mulher, mas fatalmente chego aos noventa, com a mesma coragem e espanto. Noventa!
  Acordei com esses olhos que só enxergam gente a quem ofertar amor. Isto é uma despedida; meu bilhete endereçado a quem quiser ler, assino-o com uma gota salgada da minha gratidão mais profunda. Resistir é também uma vulnerabilidade dos sensíveis.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Saudades (Clarice Lispector)

Sinto saudades de tudo que marcou a minha vida.
Quando vejo retratos, quando sinto cheiros,
quando escuto uma voz, quando me lembro do passado,
eu sinto saudades...

Sinto saudades de amigos que nunca mais vi,
de pessoas com quem não mais falei ou cruzei...

Sinto saudades da minha infância,
do meu primeiro amor, do meu segundo, do terceiro,
do penúltimo e daqueles que ainda vou ter, se Deus quiser...

Sinto saudades do presente,
que não aproveitei de todo,
lembrando do passado
e apostando no futuro...

Sinto saudades do futuro,
que se idealizado,
provavelmente não será do jeito que eu penso que vai ser...

Sinto saudades de quem me deixou e de quem eu deixei!
De quem disse que viria
e nem apareceu;
de quem apareceu correndo,
sem me conhecer direito,
de quem nunca vou ter a oportunidade de conhecer.

Sinto saudades dos que se foram e de quem não me despedi direito!

Daqueles que não tiveram
como me dizer adeus;
de gente que passou na calçada contrária da minha vida
e que só enxerguei de vislumbre!

Sinto saudades de coisas que tive
e de outras que não tive
mas quis muito ter!

Sinto saudades de coisas
que nem sei se existiram.

Sinto saudades de coisas sérias,
de coisas hilariantes,
de casos, de experiências...

Sinto saudades do cachorrinho que eu tive um dia
e que me amava fielmente, como só os cães são capazes de fazer!

Sinto saudades dos livros que li e que me fizeram viajar!

Sinto saudades dos discos que ouvi e que me fizeram sonhar,

Sinto saudades das coisas que vivi
e das que deixei passar,
sem curtir na totalidade.

Quantas vezes tenho vontade de encontrar não sei o que...
não sei onde...
para resgatar alguma coisa que nem sei o que é e nem onde perdi...

Vejo o mundo girando e penso que poderia estar sentindo saudades
Em japonês, em russo,
em italiano, em inglês...
mas que minha saudade,
por eu ter nascido no Brasil,
só fala português, embora, lá no fundo, possa ser poliglota.

Aliás, dizem que costuma-se usar sempre a língua pátria,
espontaneamente quando
estamos desesperados...
para contar dinheiro... fazer amor...
declarar sentimentos fortes...
seja lá em que lugar do mundo estejamos.

Eu acredito que um simples
"I miss you"
ou seja lá
como possamos traduzir saudade em outra língua,
nunca terá a mesma força e significado da nossa palavrinha.

Talvez não exprima corretamente
a imensa falta
que sentimos de coisas
ou pessoas queridas.

E é por isso que eu tenho mais saudades...
Porque encontrei uma palavra
para usar todas as vezes
em que sinto este aperto no peito,
meio nostálgico, meio gostoso,
mas que funciona melhor
do que um sinal vital
quando se quer falar de vida
e de sentimentos.

Ela é a prova inequívoca
de que somos sensíveis!
De que amamos muito
o que tivemos
e lamentamos as coisas boas

que perdemos ao longo da nossa existência...

Amanda Machado disse...

Linda Clarice! :)