segunda-feira, 25 de julho de 2016

O que os olhos de Alice não veem, ainda existe

  Quando ela chegou, mobilizou a família inteira. Com ela nunca houve avareza; desde a sua entrada pelo portão da casa, foram inteiros de amor, devoção, todo tipo de cuidado e atenção. Alice movimentou a vida deles, passou a ser assunto, motivo de alegrias e preocupações. Alice não é só um membro da família, parece ser o alicerce deles agora. Escuto o seu nome mais vezes do que o de qualquer outro morador da casa, fazem compras para ela, desenham planos em torno do seu nome e alimentam o futuro da família a partir da existência dela. Alice não habita a casa. Alice habita todos os espaços, de dentro, dos moradores da casa.

  No entanto, este afeto desesperado que lançaram a ela desde o primeiro instante, rouba da cadela partes preciosas da sua vida que parece servir apenas como uma oferta aos seus donos. Nunca a deixam ir à chuva, mesmo no verão mais ardente - Alice nunca sentiu os pingos de água caírem das nuvens no seu pelo macio, nunca sentiu uma gota cair nos olhos e antes de poder fechar ser surpreendida já por outra. Alice nunca correu na chuva - saem com ela na coleira amarela uma vez por semana, no máximo, e para ir ao veterinário entra no carro já no colo de alguém. Vive na ilha de amor construída por sua família, sem nunca lhe oferecerem um bote para outras descobertas. Desconhece tudo aquilo que não são eles. Negam a ela o que a um cão, ou outro qualquer ser, é  essencial: negam-lhe a vida, as muitas paisagens que correm lá fora.

  A existência tão regulada e imune a dores e, por isso também a descobertas, que oferecem à cadela de rosto magro e comprido fez dela um bicho cativo, cujos instintos parecem se afogarem no rio de regalos, atenção e amores. De início, quando eu chegava a minha janela e os nossos olhos se encontravam, ela latia para mim desafiadora, abusada, chegava até bem próximo à grade da sua varanda, enfiava o focinho entre as hastes duras e frias e avançava como um cão de caça. Fazia-o também com quem passasse à rua, na parte de frente da casa, até algum dos vizinhos reclamar que o cão latia demais e colocaram uma placa de metal, na grade de onde ela via a rua. Mais uma perda para Alice, mais uma limitação que os cuidados desmedidos dos homens infligiram à cadela.

  Não tem mais a rua ou outros humanos com quem se relacione.  Agora, se chego a janela, só vejo olhos de susto e desconfiança, Alice não me desafia. Agora só esses olhos desoladores de medo. Os donos dela cercaram-na com um afeto escandaloso, efusivo, que se edifica sob gritos de felicidade,  mas roubaram sua coragem e ousadia de bicho.

  Fitamos uma a outra, tento a todo custo entender o que Alice pode ou não ver. E se um dia, de repente, caísse numa toca, como a outra e conhecesse um outro lugar? Um mundo fantástico, em que a chuva caísse e ela, alegre, recebesse a água sem limites nas suas costelas? Talvez a família sofresse muito com o afastamento, mas Alice estaria liberta no mundo. Não decifro o seu olhar inquietante de cão com medo. Não sei como ela se sente, embora eu pense que cachorro e gente compartilhem de uma essência que, em alguma medida, não se diferencia. Talvez seja melancolia nos olhos pretos da cadela. Olho para a face magra de Alice, seus olhos de medo para a vizinha estranha, e penso que nada posso fazer por ela, nem pelos seus dias de bicho cativo.

  O que sente Alice? O que vê nas brechas de atenção da família? Consegue ver além do que oferecem a ela? E ela sabe que existem outros rostos que não aqueles afetados da sua família e este da desconhecida que perscruta sua vida agora? Ela saberá algum dia escapar desse amor? E se souber, terá coragem de perdê-lo para ganhar o que desconhece? Será que Alice se liberta ao olhar o céu? Este ainda permitem-na assistir.

  O que é de um cão, só ao cão pertence. Não saberei nunca. Amar devotadamente a um cão, até ele não ser mais um cão. Desconheço o sentido desse amor-prisão.

  Chamam-na, com insistência, de dentro da casa, a cadela vacila entre os meus olhos de empatia e os gritos deles. Mas se volta para o amor pelo qual é sacrificada diariamente. Esse mesmo que retira de um cão o que é do cão. Desde que nasceu conhece isto: esse estranho e sufocante afeto. Me abandona. Se entrega a eles de novo.
  Por isso, acho, minha incapacidade evidente em ter comigo cão, gato, pássaro ou gente. Esse amor que nos aproxima é o mesmo que aparta-nos do mundo. O que os olhos de Alice nunca veem é que a toca do coelho fica depois do portão de entrada. Alice, há um país que eu adoraria que você conhecesse.




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