quinta-feira, 21 de julho de 2016

Se a corda soltar, quem sabe voe?

  São dois blocos de mais de vinte andares; espelhados, refletem  não só a paisagem de fora, como muito do que a cidade desejou ser. No centro, entre dois prédios históricos, uma aparente contemporaneidade brilha. Do lado de dentro, as salas são tão pequenas e despersonalizadas, como as de qualquer outra construção comercial. Os elevadores são os mesmos, os serviços e o bom humor matinal do porteiro e dos ascensoristas também se parecem com os dos prédios vizinhos. No entanto, há uma experiência que o edifício espelhado do centro proporciona aos seus visitantes, funcionários e toda a sorte de gente que passa por ele todos os dias, que eu desconheço em outros espaços públicos: o de ver a cidade, bem do alto, do último andar e se, ainda, colocamos a cabeça recostada no vidro, ao final do corredor, onde ele está inteiro, experimentamos a transparência dos pés até a cabeça, imaginando o corpo solto no ar.  É, sem dúvida, uma das melhores sensações que o edifício pode proporcionar.

  Quase não o visito, não é um lugar que faz parte da minha rotina, mas todas as vezes que preciso ir lá, eu já saio do elevador no último andar, mesmo que não seja o meu,  e vou até a transparência da liberdade. A cidade é sempre bonita de lá, não há um clima ou horário ideal, o silêncio e o voo imaginado sempre fazem a experiência valer a pena. Mas desta vez, pela primeira vez, experimentei outra coisa que não era paz. Desci do elevador, segui direto para o vidro e do outro lado, na mesma altura que eu, mas do lado de fora, um homem limpava a fachada. Sozinho, assumia a responsabilidade pela transparência que eu desfrutava sem a consciência de um trabalho tão arriscado.

  Não olhei mais para a cidade, tampouco simulei a liberdade de um corpo solto no vidro. Passei a acompanhar o trabalho minucioso do homem a minha frente. Senti medo, muitas vezes e a angustia de não vê-lo acompanhado. Só um par de mãos aparecia por um dos basculantes, para trocar o esfregão, entregar uma garrafa cheia d'água ou  uma toalha, com a  qual o homem enxugava os óculos de proteção e as mãos, algumas vezes. Toda vulnerabilidade do homem, exposta em frente ao prédio do centro. Eu, daqui, demorei muito tempo até ter coragem de ficar tão próxima do vidro, depois mais,  até colocar a cabeça nele e mais ainda, até ser capaz de colocar o corpo todo contra o vidro e me sentir, finalmente, entregue e calma. E ele, quanto tempo até estar lá fora, sem vidro nenhum que o amparasse?

  Suspenso por um andaime, preso por um cinto, que era amarrado a uma corda, o homem nunca  olhava para baixo, se limitava ao trabalho que estive no seu campo de visão, pedia mais espuma e água ou trocava de esfregão, mas não o via conversar, se distrair com qualquer outra coisa. Trabalhava com muita seriedade e a precisão de um joalheiro. Esfregava cantos, jogava a água até o sabão sair completamente e ainda, inclinava o corpo um pouco para trás, como se tomasse distância para ver o que de perto não ficasse muito evidente. Buscava manchas, um canto esquecido, alguma poeira que a água não tivesse alcançado. Era um perito o homem. Não acho que tivesse medo de altura, se fosse o caso talvez não aceitasse o trabalho, mas também não parecia uma coragem mais completa, porque se cercava de segurança, conferia a corda, eu via.  Não ousava muito para além do que o próprio cercado permitia, não se esticava tanto nem estendia, ao máximo, os braços. A precaução era um limitador. A água escorregava pelo vidro e ele passava o rodo, depois jogava mais água e a recolhia novamente, fez isso incontáveis vezes e repetia com excelência. Os pés nem sempre ficavam seguros e o andaime balançava com os ventos ou com qualquer movimento levemente mais amplo.

  E a cada ondulação da corda que segurava o seu cinto, eu sentia o estômago quase congelar. Queria sair, não queria mais viver o suspense de vê-lo a cada gesto, mas não conseguia mais ter a minha vida liberta, sabendo que alguém do outro lado, arriscava a sua. Ele de fora e eu dentro, compartilhando a mesma altura, mas vislumbrando perspectivas completamente diferentes, vivendo voos com quase nada em comum. Ele tão seguro, mesmo sem ao amparo do vidro e eu tão desprotegida, em chão de concreto. Ele sem o prazer de uma experiência sem riscos, eu sem o vento de fora, levantando as roupas, bagunçando os cabelos e sacudindo os ânimos.

  Então, depois de algum tempo de gestos repetidos, uma fresta mais distante o fez ir até a beirada  do andaime, encostar o peito no vidro e esticar o braço até a sujeira que só ele podia ver e alcançar. As cordas começaram a balançar muito, o andaime ficou completamente instável e eu o vi, pela primeira vez, olhar para baixo. As mãos que o auxiliavam do basculante, não apareceram. Acho que ele ainda procurou-as, mas era um estado de completa solidão que ele vivia agora. Não tenho ideia do que ele pensou quando viu a altura, mas daqui eu não vi a palidez do medo nem pareceu fazer nenhum pedido aos céus. Olhou sem deslumbre, com um  certo desdém, sem se impressionar com a possibilidade da queda. E quando achei que ele se sentaria, porque dobrou os joelhos, ele jogou o corpo mais para frente, esticou o esfregão em direção ao seu alvo e, vitorioso, limpou a fresta.

  Ele não confiava só na destreza e experiência, por um segundo ou dois, ele esqueceu de uma queda possível, de um acidente fatal no trabalho, ignorou, inclusive, a possibilidade muito próxima da sua morte. O andaime desequilibrou-se por completo. Ele saltou em direção a um parapeito e eu juro que achei que o veria cair, ao menos tinha uma corda, tinha uma chance de vida. Não acho que não tivesse medo, mas convocou a coragem para enfrentá-lo. Ele se esticou no momento mais desfavorável, não por confiança, mas por um certo sentido de destino marcado, por querer cumprir o trabalho, por não poder mais esperar uma volta, alguém que se ausentou no momento exato da sua necessidade. Voou ele para o parapeito, porque ele só tinha a si mesmo e o compromisso de manter os vidros transparentes para a liberdade ilusória de outro alguém.

  Com a cabeça recostada no vidro, eu vi um homem saltar, num segundo, heroicamente, pela  decisão de não esperar mais ninguém. Só ele poderia pular, nenhuma corda para salvá-lo de outras quedas. Ele não caiu, saiu ileso do outro lado. Mas antes, olhou para baixo, confrontou a altura, sentiu o vento carregar seu chão já tão instável e jogou-se para o parapeito, sua chance de salvação. Não sei por quanto tempo continuará incólume, nem se estará a salvo noutros voos e saltos, de uma queda sem corda ou de uma corda que resista menos do que o seus impulsos: o de cumprir com uma promessa e o de se salvar sem ninguém. 

  O vidro lá fora brilhante, a minha paz que não veio e o vento que eu ainda não pude sentir no rosto. Duas experiências tão opostas e eu, com a cabeça no vidro, desejando estar no andaime vazio. Foi no pulo para o parapeito, no momento antes de seus pés poderem alcançá-lo, que eu o vi voando plenamente. Menos de um segundo de liberdade, uma vida inteira colocada em risco e um futuro garantido pelo pulo certeiro. É o impulso para o salto que eu invejo, não há altura que o fizesse desistir depois de dobrar os joelhos com tanta convicção. Numa decisão dessas, se a corda arrebentasse, talvez aprendesse mesmo a voar. Só quem abdica da segurança de estar do lado de dentro, quem não se ilude com a liberdade do corpo amparado pelo vidro, quem se coloca a toda prova com a rosto ao vento e na instabilidade de um chão flutuante, pode mesmo voar algum dia, por um segundo que seja.
 



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