sábado, 13 de agosto de 2016

Um pássaro pousou no fio de alta tensão

  Só olhando a janela sem esperar nada. Porque ninguém disse que viria, eu não esperava sair, tampouco fui conferir o céu para ver se ia chover. Abri as cortinas, num sábado desses, e olhava para fora, sem tentar entender, ver além ou ser surpreendida. Abri a janela, já sabendo o que veria e gosto tanto do habitual, que continuo assistindo-o, cada dia mais e mais familiar. Tão próximo que um dia não saberei mais o que é fora ou dentro; a janela não nos definirá.

  Então, vindo de algum lugar que eu não pude ver, voou um pássaro e num rasante cheio de vitalidade, pousou em um dos fios de energia, em frente a minha janela. Primeiro, achei que fosse um pássaro da rua mesmo. Uma pomba, um pardal, uma andorinha ou joão-de-barro, que aterrissam, ficam alguns minutos, descansando as asas, planejando a rota e depois vão embora. Mas não foi o caso deste. Chegou sem assombro, sem susto, sem eu nem perceber que vinha diferente. Chegou vestido de rotina, mas passei a fechar as cortinas de outro jeito depois deste pouso. Foi ficando o pássaro, bem ali, em frente à janela acostumada.

  Esperei o momento que ele levantasse voo ou que um outro chegasse para partirem juntos. Esperei pelo hábito, porque tem sido assim desde a primeira vez que abri a janela. Mas o pássaro não fugia e eu acho que ele me olhava, como um pássaro nunca faz. Os cães me olham nos olhos,  os gatos, então, são os mais tenazes, são capazes de olhares de muitos minutos, quase sempre sou eu quem acabo por desviar da profundidade deles. Mas os pássaros não, eles parecem não esperar nada de um humano. Não fixam olhares, são mais voláteis, se dissipam no ar, sem nos levarem com eles. Por isso este me parece não ser um pássaro qualquer. É resistente, é duro no fio, não arreda, não se espanta com os barulhos e me olha.

  Um pássaro pousado no fio de alta tensão e eu não conseguindo ir embora, abandonar o que era ócio costumeiro e, agora, é surpresa e mistério. De onde terá vindo o pássaro? Que tipo é este que não se parece com os outros que passeiam pela rua? Nem a cor das penas eu sou capaz de definir. E, por que me olha o pássaro? Por que me assusta e parece me ler como os gatos? Por que a demora na partida? Quanto tempo ficaremos a nos olhar? Não quero desviar dele, não quero ser eu a desistente, a fujona, então mantenho a janela aberta, coloco os cotovelos sobre o parapeito e prometo não desistir. A nossa manhã se prolonga, a permanência da posição me incomoda e a sede começa a me provocar. Vou até a cozinha por um minuto, coloco meio copo de água e volto para a missão de entender esse desconhecido, que me provoca. Mas quando volto, ele não está mais. Partiu e me deixou com a frustração do abandono e meio copo com água.

  Não sei de onde ele veio, nem sei o porquê do meu interesse pela sua origem e destino. Ainda coloquei a cabeça para fora da janela, me debrucei para tentar um reencontro, quem sabe ele estivesse em um fio mais a frente? Os pássaros de sempre fazem isto, muitas vezes, vão saltando de fio em fio, testando posições e melhores ventos, antes de ousarem lugares mais distantes. Mas o pássaro que me surpreendeu com o olhar não, ele foi definitivo e implacável, numa mirada, alçou voo longo e me deixou buscando-o; mulher miserável a procura de uma ave. Ele partiu e eu não me esqueci que não é um pássaro como os outros. Desde então, tenho vindo à janela diariamente, esperando só por ele. Um vestígio qualquer da sua passagem.

  Às vezes, penso que ele nunca passou por aqui, que sonhei com a sua presença, com o tempo do pouso ou, pelo menos, com o olhar inquisidor de um felino,  num pássaro. Mas, logo, tenho a certeza da passagem, porque não sou mais a mesma desde que soube de um pássaro sem cor,  pousado no fio de alta tensão, em frente a minha janela. Tenho andado sobressaltada com a possibilidade de uma mudança se aproximando, como se a vinda do pássaro anunciasse  um maremoto,  algo que desestabilizasse o concreto da minha rua. Mas também tenho sentido uma paz que há muito não me visitava. Tenho perdido horários, aqueles que a minha disciplina impunha, tenho esquecido as datas tristes,  tenho inventado nomes novos para coisas antigas e arejando os espaços da memória, rasgando fotos antigas, queimando cartas que não me dizem mais nada. Tenho flutuado um pouco, mesmo que ninguém possa ver.

  Pensei em compartilhar com algum vizinho deste meu encontro, mas suspeito que quando o pássaro me olhava não tivemos testemunhas. Só quem sabe do voo, do pouso e da partida, sou eu. Não falo do pássaro, mas sei que a minha vida reconhece a sua existência e sente as suas influências. Não sei de onde veio, se vai ser breve ou dormirá uma vida inteira no fio. Mas chegou e mudou alguma coisa que eu nem sei dizer. O pássaro no fio de alta tensão é o meu último pensamento antes do sono e, de novo, aparece antes do café. Agora, tenho acordado buscando a janela, só querendo entender um pouco do pássaro. Mas acho que nunca saberei mais do que sinto. Um pássaro pousou no fio, num dia qualquer, e a vida ganha outra perspectiva para além dessa janela habitual.



Nenhum comentário: