segunda-feira, 29 de agosto de 2016

De saia branca com bolas azuis

   O que somos para os outros é quase sempre um mistério para nós. Somos o que não imaginamos, falamos uma língua que não conhecemos, somos a repetição que não chegará a acontecer, o gosto que nunca tivemos, a música da qual nunca gostamos, o filme que nem assistimos até o final. Amam-nos mais pelo que acreditam que conhecem em nós, mas nunca chegamos mesmo a ter; nos culpam pelo grito que nunca daremos. Somos, para nós, um espanto se nos vemos nos olhos dos outros
- Sou eu essa do desenho?
Pergunta assustada para criança.
- E se lembrou de mim quando comprou esse presente?
Segura o regalo, recostada na parede, tentando encontrar a identificação que não foi imediata. E inventamos que nos agrada, porque não queremos admitir que somos esse desconhecimento.

  São imagens de um outro tempo, uma família alegre que ergue copos de vinho barato, uma casa com paredes rosa, uma mesa de domingo que nunca mais foi cheia e um quintal, com roupas no varal - uma saia branca de bolas azuis pendurada - que nem existe mais. No filme de qualidade muito baixa, um cachorro passa e eu sei o seu nome, um velho se abaixa para fazer um afago no cão e o pelo macio faz cócegas aqui na minha mão. Antes que o velho se levante, a imagem corta para um prato na mesa, sinto o cheiro antigo da comida, todas eram minhas favoritas, nem lembro se comia bem, mas do cheiro eu sei que jamais vou esquecer. Depois do prato, um bebê dá passos cambaleantes e a câmera o persegue, várias pernas se afastam e dão espaço para  criança, que perdida na vastidão sem paredes, cai, chora e levanta os braços para as primeiras pernas que se aproximam. Uma mulher se abaixa, vemos seu rosto feliz e o bebê a reconhece, ela o segura, ele para de chorar, enquanto ela o balança e faz caretas; ele sorri. Vamos a outra cena.

  A câmera se volta para um grupo de crianças que brinca no quintal, são oito ou dez  de tamanhos bem próximos, a janela da cozinha é a moldura da cena, quando veem que estão sendo filmadas, se aproximam, dançam, fazem caretas, ensaiam acenos, se exibem no filme caseiro. Uma menina de vestido verde água e batom vermelho, posa com as mãos na cintura, a câmera dá um zoom e ela nunca mais poderá ser esquecida. Sorrio, no sofá, mais de vinte anos depois, cheia de ternura e saudade.

  Depois, no filme, há uma sucessão de recortes de lugares, faço uma visita: a horta com pés de couve gigantes; a banheira instalada perto do tanque, onde colocam as roupas de molho; um jardim de hortênsias e rosas; algumas samambaias penduradas nas vigas de madeira do teto; mais uma vez, o varal, nele a camisa de um time, um avental verde musgo e  a saia branca de bolas azuis, voando, parecendo querer ir embora do varal.

  Agora volta a mostrar pessoas, reconheço uma, duas, três, quatro, na quinta eu choro e as mãos dela atravessam o tempo e a tela e secam as minhas lágrimas. Sexta, sétima, oitava pessoa, aparece um canário na gaiola e eu sei exatamente o dia em que ele morreu. O filme vai acabar e eu queria que continuasse, tantos objetos que nunca pude esquecer e outros tantos que eu não sabia se existiam mesmo. Filmam os homens perto do fogão de cimento, alguns bebem, outros só sorriem sem nenhuma embriaguez aparente, uma mulher puxa seu homem e dançam no meio da cozinha, rodopiam desajeitadamente, sorriem enquanto um público bate palmas e no fundo da imagem, em segundo plano, uma mulher acena e sorri para a câmera.

  No fundo da cena, seu olhos atentos, sua expressão mansa, suas roupas que repetem ao longo dos anos e mãos que eu nunca via vazias de trabalho, mas agora acenam suaves, alegres, delicadas como as de uma senhorita sedutora. Por que eu nunca a vi ali antes? Logo ela que fugia das fotografias, abaixava a cabeça para os flashes e se enrubescia se alguém pedia sorriso? Por que o gesto? Ela acena e sorri, num filme que eu já assisti tantas vezes e que mesmo que há anos não revisite, conhecia sua sequência sem erros. Mas a mulher castanha, sóbria, tímida, de vestido marrom, com flores brancas, sorri e acena para câmera mais de duas décadas depois do evento. Eu só a descubro agora, sozinha, no sábado à noite. A cena me comove, preciso partilhar com alguém, pego o telefone e não sei para quem dizer que ela sorria e acenava na porta da cozinha. Perguntarão o porquê do filme logo hoje, dirão que sou nostálgica ou algo assim. Desisto da ligação.

  Construimos imagens de pessoas, lugares e circunstâncias e nos agarramos a elas como se sempre fossem e estivessem lá de um mesmo jeito. Acreditamos conhecer todas as possibilidades de uma pessoa, baseados nas nossas crenças sobre elas e experiências que insistimos termos testemunhado. Mas se um só gesto, palavra ou imagem, de repente, contradizem o que sabíamos dela, parece que uma outra pessoa nasce e  essa novidade nos convida a dançar no meio da cozinha. Sem música, atrapalhados pela surpresa, sem a intimidade dos amantes, rodopiamos perto do fogão, tentando não pisar nos pés um do outro. E nessa reinvenção, nestes novos nascimentos de alguém a quem amamos, o amor não teme o desconhecido. Chega delicado com a saia do varal e um copo de vinho barato.

  O Filme acaba. Não ligo para ninguém, não conto a cena, a quero assim para mim, só. Ela é uma descoberta minha, ela é o meu par no chão da cozinha. Vamos dançar a madrugada inteira e só eu conhecerei os seus novos passos. Quando ela acenou para câmera eu duvidei que era ela, porque não admitia que eu nunca conhecerei um filme por completo. Das pessoas, lugares e coisas só temos fragmentos e assim, também, os outros nos têm. Desse jeito o amor nunca acaba, ele sempre pode atravessar a porta de saia branca com bolas azuis.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 29 de agosto de 2016

Prezada Amanda
Escritora da mais fina supimpitude

A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a história, uma representação do passado (Pierre Nora).

Ver o passado decodificado em imagens, sem o simbolismo, o simbólico das lembranças, mas com a tangível arte da visão real é de fato marcante. Não nos dá a direção, mas nos mostra o porto de onde saimos.

Muito bom! Eu vou ser ousado - esta postagem está entre os que mais me fizeram refletir sobre o sentido das coisas, coisas coisadas, coisas coisando e coisas a se coisar.

Um abraço

Paulo

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 30 de agosto de 2016

Caro Paulo,
O leitor mais astuto da história (ao menos daqui...) Não conhecia supimpitude (desconfiei que soubesse, depois achei que não sabia e, finalmente, recorri ao google e era o que eu pensava!rs)

Muito boa a perspectiva de Nora, a memória sempre nos surpreende com uma visita; um passado que nunca passa completamente.

Que bom que a coisa toda pode coisar em reflexões, sendo assim, as coisas coisam mais demoradamente, permanecem coisando e dão mais graça à coisa.

Abraços