quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Na estampa da camisa

    Era de um estampado de acordar lembrança muito antiga, de trazer à vida qualquer esperança sepultada, de sacudir e espalhar as partículas de um repouso absoluto. Estampado de não ter dúvidas. De olhar de longe e saber do anúncio sem necessidade de palavra nenhuma. A camisa do homem definia o essencial do homem: singular. Nada se aproximava do que ele era, nada no mundo concorria com a sua estampa. Corajoso, porque não se camuflava na massa masculina de camisas polo e calças jeans; inseguro, porque tinha o medo da invisibilidade.Subia a mesma rua todas as quartas, de manhã, se ele não estava não era quarta-feira, o encontro com ele definia o que era meio da semana. Era o homem certo, que não se atrasava, não se ausentava, não vagueava por outras ruas que não esta, às quartas, às oito. Não demorei a gostar dele, foi fácil, foi pela camisa; pelo silêncio acostumado, só rompido  pelas frases certeiras; pelo sorriso que demorava a vir, mas sempre escapava um pouco; pela serenidade dos olhos, quando não entendia uma pergunta e dizia: "Perdão?" e, principalmente,  pela constância da presença e pela habilidade em acreditar em sementes que sempre vingam.

  A camisa era alegoria. A estampa da camisa era o seu avesso, colorida, expansiva; espalhafatosa vestimenta. O homem das quartas, vestia o que não se parecia em nada com ele, que era sempre tão taciturno, voz baixa, comedido. A escolha inusitada sempre me despertou a curiosidade, buscava entendê-lo na contradição entre o figurino-roupa e a personagem-homem.

  Transitava por todas as casas com total liberdade, fazia pequenos consertos, pintava janelas, diagnosticava os males dos animais domésticos, ajustava antenas de TV e até fazia carros parados, arrancarem. Mas dos trabalhos todos a vocação maior ele exercia nos jardins. Depois das mãos desse homem, a primavera passou a durar doze meses correntes, ao ano, na rua. Nenhum espaço era desprovido de potencial para fazer brotar um musgo que fosse, muito úmido ou extremamente seco, com luz direta o dia todo ou sem nenhuma iluminação, espaços muito limitados ou grandes; a mágica sempre acontecia pelas mãos do homem discreto de estampa exuberante.

  Confiavam a ele uma sorte de missões e ele nunca decepcionava, era muito considerado, querido mesmo. Os pratos com biscoitinhos, sucos naturais, bolos fofos, se perdiam entre as suas ferramentas, parava só para comer, aceitava sempre todas as ofertas - lá de casa, ofereciam o doce de leite que a minha avó fazia. Ele nunca recusou e o elogio, embora muito tímido sempre vinha cheio de gentileza - quando ia embora, ainda ofereciam algum embrulho com bolo, torta ou uma sacola com frutas. Eu sempre achei que ofertar comida era uma espécie de amor. Então, amavam o homem certo das quartas-feiras.

  Os jardins das casas de toda a rua iam muito bem, até um primeiro comentário pairar sobre os portões e as janelas dos pacíficos moradores. No passado desconhecido, do homem de quem só sabiam o primeiro nome e  reconheciam a estampa da camisa, mas a quem recorriam a toda e qualquer emergência, tinha nas mãos habilidosas com a terra, o vermelho de uma outra vida interrompida. Na primeira quarta-feira, logo depois que descobriu-se o caso, não mudou muita coisa na convivência entre ele e os meus vizinhos, mas a cada semana, uma nova informação assustadora se espalhava e o homem, antes confiável, passou a ser rejeitado. Alguns vizinhos contrataram novos jardineiros, que vinham às terças, levavam seus carros a mecânicos, chamavam eletricistas e pintores, até o homem ficar limitado exclusivamente ao jardim minúsculo do nosso prédio.

  Todos conheceram os comentários, os detalhes de um assassinato cruel, de um passado recente entre grades, mas nunca perguntaram a ele, nunca desconfiaram das primeiras notícias nem dos detalhes absurdos que a cercavam. Nosso jardim era o mais bonito, mas ele já não comia o doce de leite da minha avó e nenhum outro regalo era oferecido a ele. É claro que ele sabia que o seu passado tinha sido exposto e era comentado, mas o homem de estampa poderosa, permanecia quieto, silencioso, restringindo-se às respostas muito delicadas. Eu continuava fascinada, observando suas camisas, sua gentileza com as folhas mortas, seu cuidado com as sementes, que sempre brotavam, independente das condições difíceis.

  No nosso pequeno canteiro, além das rosas, ele cultivava musgos, essa planta empertigada, teimosa, resistente a tudo, que sequer precisa de atenção ou algum tipo de cuidado. Mas ele tornou os musgos plantas harmônicas, domáveis e até bonitas. Eu passei a gostar mais dos musgos do que das rosas. Ele mudou a minha primeira concepção de estética. Eu  o observava  da  minha janela, numa distância segura para ele, eu sempre tão falante, curiosa e indiscreta temia expô-lo ainda mais. Enquanto ele trabalhava, rodeado por uma calmaria infinda, eu pensava se ele seria mesmo um homem capaz de matar outro homem e se fosse, se o faria novamente e em que situação. Poucos falavam com ele agora, quase ninguém o requisitava e, gradativamente, sua estampa durava menos nas nossas quartas.

  Numa manhã, enquanto ele replantava uma roseira, que tinha sido tomada por alguma praga e agora murchava, debaixo de uma chuvinha fina e um frio lancinante e ele muito concentrado, pousou na sua camisa uma vespa, grande, verde. Ele se assustou, derrubou a muda que ele transportava cuidadosamente, no chão, pisou nos musgos e caiu sobre as outras rosas saudáveis. Esperava pela sua ira e o homem desabotoou a camisa, fez as estampas dançarem sob os meus olhos, encontrou a vespa, segurou-a como um botão de rosa e a colocou, com toda a gentileza, do outro lado do muro. O homem não condenou a vespa, não lançou xingamentos ou desistiu do trabalho. Ele foi doce, calmo e misterioso até o dia que cimentaram o jardim para dar mais amplitude ao estacionamento.

  Resignado, no último dia de trabalho, ele pediu algumas mudas das rosas que eram mais dele do que de qualquer outro morador, raspou um pouco dos musgos e seguiu, sem nenhuma despedida mais emocionada. O estampado da sua camisa balançava ao vento e eu quis dizer que sentiria a sua falta, que não duvidava da sua gentileza, que eu testemunhara as muitas vidas que ele fazia brotar e, até, da que havia poupado, mas não desci do apartamento. Estampado, misterioso, mãos hábeis e conversa pouca, um homem cujo passado  reviraram, sem pudor, como uma  terra que precisa ser remexida para a pega da rosa, recebeu a condenação perpétua da desconfiança, porque nunca o viram da minha janela.

  Depois que ele partiu, nunca mais a vida na rua foi tão próspera. Da sua intimidade com a terra eu me lembro sempre, ainda repasso cenas inteiras, das suas mãos na terra e o aconchego das plantas com a sua presença; os musgos, para sempre, serão minhas plantas de predileção: determinados, discretos e resistentes. A camisa estampada era o seu grito de existência, sem ela ele era invisível para sempre, na força das cores, estampava o seu desejo pela liberdade plena; o único pecado era a impossibilidade de uma segunda chance. No colorido da camisa e na escolha do trabalho o desejo de gerar vidas e comemorar chegadas. A transgressão era toda da roupa.  Se olhassem para a camisa dele, se o vissem entregue à terra como eu o via, teriam confiado nele.

  Ainda ando pela cidade, olhando jardins e buscando musgos, rosas e um homem de camisa estampada a quem devo muitas desculpas.
- Senhor, eu não desci do apartamento aquele dia, mas eu vi o senhor salvar a vespa.
- Perdão?
- São lindas as rosas que o senhor cultiva. Bom dia, um bom trabalho.




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