sexta-feira, 5 de agosto de 2016

Se eu vendesse guarda-chuvas

    Se num acaso desses, dentre tantos possíveis na vida, porque a gente sabe dos infindáveis e inexplicáveis
caminhos que tomamos todos os dias e que nos fazem ser o que somos, se o meu destino fosse outro e eu vendesse guarda-chuvas, por exemplo. Não passava pelo embaraço de explicar o que é. Bastava abri-lo, colocá-lo nas mãos de um interessado cliente e dizer o que, geralmente, um consumidor de guarda-chuvas, gosta de ouvir: durável, muito.
- Isto aí aguenta chuva pesada, de granizo até.
  Ou que era prático, que cabia em qualquer lugar, que podia voltar e trocar, se dentro de um mês desse algum defeito. Não sei. Estabelecíamos um diálogo bem enraizado, atado ao chão e às coisas materiais. Um guarda-chuva é uma evidência, prova  incontestável da necessidade e da compra; satisfação garantida em dia de chuva.

  Se eu vendesse guarda-chuvas, por exemplo, iria para alguma rua central da cidade, para o calçadão, eu acho. E levava comigo alguns exemplares da mercadoria, carregaria a quantidade que pudesse, sozinha, e previdente deixava o restante em algum depósito próximo. Escolheria a marquise do prédio mais bonito e ficaria debaixo dela, assistindo toda a gente passar. Os filhos fazendo manhas, fazendo suas mães odiá-los por alguns minutos; os casais jovens enamorados, trocando promessas impossíveis; os homens e as suas pastas urgentes e sérias; uma senhora olhando as vitrines; os outros vendedores de coisas com serventia, como o meu guarda-chuva, negociando suas mercadorias. Faria amigos, saberia da vida deles, compartilharia algumas partes da minha e eu sempre me perguntaria se era dia de chuva ou não, porque se fosse, a venda era certa.

  Assistiria a rua vazia se encher, lentamente, e depois, veria o burburinho ganhando dimensões cada vez mais robustas: uma confusão, uma briga, a chegada da polícia e algum dos meus companheiros disposto a testemunhar em favor de algum dos lados. Então, ele me passaria a mercadoria dele, para não perder, completamente, o dia de trabalho e eu venderia guarda-chuvas e um aparelho simples de amassar alho - duas coisas de muita utilidade. Separaria os ganhos de cada um, daria o dinheiro dele e quando a rua ficasse mais vazia, quando eu escutasse as vozes nítidas, conseguisse ver  a poeira dos dias secos, se levantado do piso e caindo de novo, quando as lojas começassem a baixar as portas e as luzes dos postes se acendessem, eu me despediria da rua e voltaria para casa, cumpridora do meu destino de vendedora de guarda-chuvas.

  Venderia três cores de guarda-chuva: um preto, para os executivos  discretos; o vermelho, para as moças de coragem e um estampado com flores miúdas, para os poetas.
  Se eu me tornasse uma vendedora de guarda-chuvas eu não passava pelo constrangimento de não saber como vender. Eu criaria um texto fácil, curto e muito eficiente, só para demonstrar mesmo o desejo da venda, porque me comprariam mesmo que eu nada dissesse. Um guarda-chuva é de tão simples manuseio, que qualquer explicação confundiria o processo; é, ainda, necessidade universal, todos sabemos que um dia ele será necessário. Basta olhar para céu ou ver a previsão do tempo e pronto, é o dia dele!

  Se eu vendesse guarda-chuvas eu nunca seria ignorada ou subestimada numa feira, porque não importa o que uma feira vende, as pessoas vão até lá com uma necessidade intrínseca de consumo selvagem, são caçadores que não saem sem uma presa abatida, seja ela de que espécie for. Se existe feira, vão para encher sacolas, não adianta. E se o vendedor tem uma mercadoria cuja função lhe escapa ou da qual não sabe, minimamente, falar sobre o uso: está fadado a humilhação da invisibilidade como punição.

  Se eu tivesse que negociar um guarda-chuva, todos seríamos poupados do incômodo da  apresentação atrapalhada.
- Moço, este é meu livro.
- E foi você quem escreveu?
- Sim. Fui.
Ele pega e analisa como um guarda-chuva mesmo. Abre, vira, lê a contracapa, elogia o título.
- Sei. E sobre o que é?
  Ele já leu a contracapa, é isso. Isso e outras coisas que eu não poderia falar. Porque não são as barbatanas de metal, nem o tecido impermeável e forte. Um livro é o que não está nele. Um livro é quase sempre sobre uma falta, uma série de ausências que precisaram ser impressas numas folhas de papel para, finalmente, ganharem vida. Um livro é um nascimento.  Eu não posso apontar o caminho. Eu só quero que ele se perca. 
-São pequenas crônicas, são...
- Quanto é?
- 40
-Parabéns
- Obrigada

  Se eu vendesse guarda-chuvas eu não teria pena de colocá-lo em mãos que talvez nunca os usasse. Depois que me pagasse, que o seu dono fizesse o que bem entendesse. Se ele serviria para proteger da chuva, para afastar cães raivosos ou para a defesa, numa tentativa de agressão, não era mais da minha conta. Se eu vendesse guarda-chuvas eu não iria um pouco em cada venda. Eu não correria o risco de me comover com um desconhecido, derramando lágrimas na minha frente, nem veria o sorriso da moça de cabelos pretos, depois de uma história. Eu não receberia um único bilhete emocionado de agradecimento, depois de um temporal. Se eu vendesse guarda-chuvas ninguém levaria minhas lágrimas junto, nem as noites de escrita, nem a felicidade do ponto final, nem o suspiro em cada vírgula.

  E se eu, no lugar do guarda-chuva, pelo menos vendesse a história de uma grande civilização, um romance que atravessasse gerações, um cântico de liberdade ou sobre um mundo mágico, com guerras, um vilão carismático, heróis cheios de ética e lealdade. Ou então, um manifesto, uma descoberta, uma análise muito vanguardista, que rompesse com um ideia remota arraigada. Mas tomei o caminho de  inventar de vender canto de pássaro, latido de vira-latas, o cheiro da comida da vizinha, as passadas sem pressa de um homem de calça jeans, a vida de uma galinha condenada,  a existência de desconhecidos desinteressantes. Queria ter guarda-chuvas para vender amanhã.

  Olho para as caixas debaixo da mesa e já nem sei mais o que fazer com elas. Se fossem só palavras, frases, textos impressos no papel, mas há tanto mais ali, que em fogueira em não sou capaz de colocar. Mas nem posso torcer para um dia de chuva, já que não servem nem para proteger um homem da água. Eu vendo coisas que ninguém precisa e eu faço, justamente, porque só aprendi a amar e fazer o inútil.

  Se eu vendesse guarda-chuvas, torcia para o céu ficar cinza, pelo menos cinco vezes na semana e descansaria durante a estiagem, sem tristeza, respeitando o tempo e o ciclo da natureza. Mas inventei de dar o que ninguém precisa, não há tempo de descanso para mim. E eu nem sei chorar por isso. As caixas de papelão cheias debaixo da mesa e, se chove, molho inteira, não tenho um guarda-chuva.






4 comentários:

Paulo Abreu disse...

Querida Amanda,

Lembrei de um encontro que tive com o Ignácio de Loyola Brandão, em 1978. Eu sequer sabia da existência daquele sujeito, e ele me abordou num evento, vendendo seu livro - Zero, que havia sido censurado pela ditadura. Oficialmente foi lançado em 1979, mas aquele homem estava resolvido a vender suas palavras. Conversamos, digo, ouvi o que ele queria com aquela obra, e isto deixou marcas profundas na minha forma de ver o mundo.
E eu lembrei dele, ao ler sua crônica, em função de outro livro dele que minha filha trouxe um dia para casa - "O menino que vendia palavras".
Eu nunca contei este episódio nem em família, ficou entre aqueles segredos pessoais, mas o que eu vi e guardei comigo é o que hoje leio aqui. Passou um flash de memória, daquelas boas, que fizeram minha vida valer a pena.
Espero, do fundo do meu coração, que você tenha sido o "Ignácio" de alguém desta juventude ainda por um mundo a descobrir.

Um abraço,

Paulo

Amanda Machado disse...

Que história maravilhosa, Paulo! Fiquei completamente emocionada...com a sua lembrança, o desenrolar de tudo e por compartilhar aqui.
Obrigada, muito obrigada. E também tenho esperanças de marcar algo ou alguém assim tão profundamente.
Abraço

Carla Machado disse...

Lembrei-me da Cora Coralina e do Jorge Larrosa: "Faço doces e poesia", dizia ela, e ele responderia: "é preciso criar o tempo para a cultura e a arte, na vida cotidiana, esse tempo não costuma existir"... e talvez seja preciso criar o tempo da degustação, seja dos sabores, seja das letras... o tempo do ócio, de ver a chuva por outro enfoque e não apenas da necessidade de chegar a algum lugar sem se molhar, apesar dela. Guarda-chuvas, apesar de duráveis, podem ser esquecidos em algum lugar, o livro pode ser frágil, mas após lermos ele permanece em nós...

Amanda Machado disse...

Duas ótimas lembranças, Carla. A simplicidade de Cora e a sua poesia são inspirações antigas e sobre Larrosa, compartilho completamente. O humano passa essencialmente pela fruição da arte; um tempo/espaço dedicado a este estado, não de ócio, mas de entrega a algo aparentemente sem utilidade. E os livros...ah os livros... ;)