sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Ouviu seu coração e não sabia se era certo

  Era consulta comum, para cumprir com a burocracia da empresa; marcou um horário depois do trabalho.
Pelo telefone, a secretária impaciente e de voz aguda, disse que a consulta dela era a última do dia e que o médico não era condescendente com atrasos, se ela não chegasse cinco minutos antes do horário, ele iria embora.
  Subiu as escadas estreitas, com degraus pequenos - os pés dela cabem nos degraus, mas uma pessoa maior teria que subir de lado. Prédio estranho, sem iluminação. Tocou o interfone e a voz de impaciência estridente mandou-a entrar. Tirou da bolsa o documento de identificação, deu-o a secretária, depois aguardou ser chamada. Nada é novo. A recepção apertada, com os mesmos dois quadros, o que fica atrás da secretária é algo suave, talvez um campo de lírios, era um quadro que teria em casa, perfeitamente.
- Teria, sem problemas.
Pensou alto.
Já o segundo é pavoroso, um arlequim com um rosto sem expressão, talvez a pintura seja o hobbie do médico e a personagem, uma das suas primeiras tentativas.
- Que melhore então! Ou só faça flores.

  A recepção é quase tão sufocante e pequena quanto as escadas, sentou em frente a secretária, que nunca é simpática, mas é eficiente, marca as consultas quando ela liga, abre a porta quando ela chega e nunca conversa - essa hora do dia, ela também prefere o silêncio. Olhou para as unhas vermelhas descascadas, lamentou a falta de um removedor de esmaltes na bolsa. Chegou dez minutos antes, a consulta duraria, no máximo, dez minutos, então talvez  fizesse as unhas, o salão é no caminho de casa. Ainda pensava no que fazer com as horas restantes do dia, antes de dormir, quando o médico abriu a porta e a chamou.

  O homem é dessas pessoas que  fazem parte da vida, que já conhecemos de outros tempos, mas que, possivelmente, se o visse na rua não o reconheceria, se tomasse um ônibus e sentasse ao seu lado, não tentaria uma conversa, se ele a parasse na rua, perguntando sobre um endereço ou as horas, ela responderia a um desconhecido. Nunca olhou mesmo para ele e nem ele para ela. Estão ligados por uma formalidade burocrática apenas. Ela subiu na balança, atingiu os cinquenta quilos há pouco e ainda tem medo que os números recuem, a pressão está boa e o médico, desconhecido fora da sala, escuta seu coração agora. Quantas pessoas na vida terão escutado as batidas no seu peito? É uma intimidade tão bonita, mas ali na sala é banalizada por esse desconhecido que pinta lírios e arlequins. Enquanto pensa que também gostaria de ouvir corações, se fosse médica, e que o faria com muito mais envolvimento, o homem fixa mais o estetoscópio na sua pele, mergulha  o metal gelado, buscando sons mais profundos.
- Acho que nunca demorou tanto!

  Enquanto ele ouve os barulhos do coração dela, anota alguns números, faz algumas expressões que só agora evidenciam sua humanidade. Quase gosta dele, se ele perguntar as horas na rua, ela responderá e depois, vai achar que o conhece não sabe de onde. Depois da demora, o médico faz perguntas mais específicas, sobre o seu histórico de saúde e o da família, confere a idade, repassa informações antigas, anotadas na ficha e, agora, parece também olhar um pouco para ela. Estava gostando de ser descoberta, se sentido próxima, quase intima do homem que acabava de ouvir seu coração com tanta curiosidade, quando ele disse:
  - Seu coração parece ter algum problema. Você precisa procurar um especialista com urgência.

  O homem de sobrancelhas grossas, cabelos grisalhos e íris amarelas, o homem que saía correndo do consultório depois da última consulta  para pintar quadros, quando chegava em casa; esse homem a quem ela acabava de ver e ser vista, depois de tantas consultas, era, pela primeira vez, delicado e gentil com ela.
  - Deve ser grave e ele me trata bem porque vou morrer. Vou morrer. Estou doente. Vou morrer, porque o homem ouviu meu coração e a sua batida disse para o estetoscópio dele que não está certo. Que bebo mais uma dezena de cervejas na vida e morro. Vou morrer jovem, sem filhos, sem tempo para ir à manicure, sem uma viagem internacional. Morro. Meu coração não me permitirá um curso de pintura. Nunca farei lírios, tampouco arlequins. Meu Deus, como avisarei à família? Quanto tempo ainda vivo? Vou pedir demissão, entregar o apartamento e aprender pintura.

  O médico pede que ela fique relaxada numa das cadeiras da recepção, que sinta-se confortável e aguarde calma, porque  em vinte minutos vai refazer o processo,  pode não ser nada.
- Como calma? Sem pensar em nada?
  Ele se levanta e abre a porta para ela, ele é muito alto e ela lembra que nunca tinha reparado nisto, como um homem grande desses, tem um consultório tão limitado, como sobe as escadas? Meio pé não cabe num degrau. Ela olha para as mãos dele, são grandes, finas e unhas num formato tão bonito, ela lembra das unhas descascadas e tenta esconder.

  Sentada na recepção, ela quer conversar, mas a secretária está completamente concentrada na matéria de uma revista, quer ligar para alguém, mas o médico pediu que ela relaxasse. E se não morresse? Se o aparelho do médico não fosse bom o suficiente, se ele fosse melhor pintor do que médico?  Como num consultório tão pequeno, com cadeiras amarelas, balcão perolado, com revistas velhas e uma TV que está sempre no mesmo canal e volume, quase escondido em um prédio esquisito, numa rua sem saída no meio da cidade, ela descobre que o coração não está certo e que pode falhar a qualquer hora?
- Isto não é lugar para notícias assim.

  A primeira injustiça, era a morte precoce, a partida com tantas promessas não cumpridas, a vida sendo gasta com números no computador, conversas superficiais, enquanto tomava café, manicure uma vez na semana e visitas a um médico que assinava uma folha para a empresa. A segunda injustiça era receber a sentença num lugar tão vazio de intimidade, numa neutralidade sufocante. Quis chorar, tentou não pensar em nada, mas o arlequim na parede parecia solidário a ela.
- Arlequim, eu vou morrer e nunca pintei um lírio na minha vida.
   O arlequim, agora, era lindo, cheio de bondade, ela achou. Ele poderia abraçá-la se, num segundo, ganhasse vida e saísse da moldura dourada. O arlequim tinha a expressão serena certa para consolar uma mulher com unhas descascadas e condenada à morte. Começou a gostar dele, conversou com ele e, cada vez menos gostava da ideia da morte. Não era medo, porque morte é certeza, mas essa proximidade agora? Sentiu urgência de ver, ser, conhecer e fazer, agora,  tudo aquilo que tinha pulverizado pela longa vida futura.

  Olhou desesperada para o arlequim, achou nos olhos dele a compreensão para a sua angústia e, sem saber como, de repente, tinha as mãos postas, como fazia quando era criança e ainda rezava na beirada da cama, com os olhos grudados num anjo de gesso e logo veio a oração do anjo, da Santíssima Trindade, da Ave Maria e quando terminava a Salve Rainha, percebeu que rogava cura para o arlequim. Ficou com vergonha do desespero e covardia, encostou na cadeira amarela, fechou os olhos e não pensou nem nas unhas. A reza, a vergonha, a constatação da sua total vulnerabilidade e a aceitação mais plena da sua insanidade pré-morte, trouxeram sossego, não pensou em mais nada, até o médico voltar a chamá-la.

  Levantou sem medo, o que o coração dissesse dessa vez, não assustaria. Se nunca tivesse aulas de pintura, nem filhos, se só tomasse mais um copo de cerveja, se nunca saísse do país, já não importava. Não era escolha dela, era o que a vida podia dar e já tinha tanto; um amor antigo, planos, sonhos, amigos muito leais e uma memória prodigiosa para orações. O gelado do estetoscópio não assustou, ela entregou seu coração ao homem a quem imediatamente reconheceria na rua, em qualquer situação e deixou que ele ouvisse a sua mais cara intimidade. Sentia que, dessa vez, regia as batidas do seu próprio coração:
- Vou viver, vou viver, vou viver.

  O médico pareceu não encontrar nada suspeito e nem abriu a porta quando ela saiu. Ela não morreria e o médico já não gostava mais dela por isso. Ela não parecia especial para ele. Saiu com a recomendação de visitar um especialista. Despediu-se do seu intercessor pendurado na parede, desceu as escadas, saiu do edifício e suspirou num nascimento longo e solitário. Não foi ao salão. No caminho para a casa, entrou num bar, pediu uma cerveja e segurou o copo, mostrando, com orgulho, o vermelho das unhas descascado e brindou ao arlequim. Não era verdade que o coração não aguentaria. A justiça finalmente parecia alcançá-la, gastará o tempo da maneira que desejar; vai desperdiçar muito ainda, com relações pobres de significado, com horas em frente a uma série ruim, um livro, filme ou música, com debates infrutíferos e sentimentos desgastantes, mas o tempo é dela. Um homem acabou de ouvir seu coração e teve dúvidas se ele batia certo. Ela também nunca soube se era esse o jeito ou não. Ia marcar hora com um especialista; e ela também queria ouvir muitos corações por aí, com mais profundidade, com uma intimidade avassaladora. Ia aprender pintura e fazer seu próprio arlequim, para pendurar na parede do quarto e olhar para ele quando rezasse antes de dormir. Bebeu mais um gole da cerveja e sentiu que dirigia a orquestra que batia no seu peito. Que bonito é um coração quando fala.




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