terça-feira, 6 de setembro de 2016

Escreva aí

  Escreva sobre aquele dia em que nós dois nos perdemos naquela viagem de carro. Conte que esquecemos o mapa e que, depois,  furou o pneu e teve a chuva, a noite na estrada. Escreva sobre como ríamos no carro quando o guarda nos parou, porque o porta-malas não fechava nunca e que ele achou que estivéssemos bêbados por causa das risadas. Escreva que ríamos tanto, que fomos muito felizes e que nunca chegamos ao endereço pretendido, mas que foi a melhor viagem que fizemos juntos. Escreva aí.
   Escreva que nunca quis ir embora, que também queria que eu ficasse e eu só vou descobrir quando eu ler, tarde demais. E vou ficar tão nostálgico, vou lembrar da viagem, do carro e do som da suas risadas e achar tão bonito em palavras impressas a revelação que esperei tanto, que não vou culpar tempo, desencontros nem enganos. Vou ler e apertar as palavras no meu peito e nos perdoar pelo que deixamos que se perdesse.

  Escreva sobre aquele final de semana em fevereiro que eu nunca entendi direito, porque era tudo tão rápido e, às vezes, você se magoava tão profundamente e esperava que eu entendesse, mas eu nunca entendia e pedia desculpas por nada e desesperado assumia a culpa de um crime que eu nem identificava pelo nome. Escreva, porque eu sempre quis entendê-la. Escreva sobre aquele choro, os soluços que brotavam depois de cada pergunta minha e de tudo aquilo que você não conseguiu me dizer. E mesmo que eu só leia muito depois, eu vou saber que a conheci e que da sua dor eu não podia mesmo resgatá-la. Escreva e eu me sentirei mais próximo ainda de você e da sua história, que também é minha.

  Escreva sobre a sua infância em Itabira, sobre seus avós imigrantes, sobre eles no navio, porque você era econômica com o seu passado e eu sempre quis ter tudo que era seu, registrado em mim. Escreva sobre aquela sua prima que morreu de amor, que se atirou na frente de um trem e de quando você gritou o nome dela e ainda grita, na esperança dela ouvir seu chamado e não querer morrer. Escreva sobre o seu pai, ensinando futebol para o seu irmão e você tentando jogar melhor do que ele, sobre a sua mãe chamando para o banho três vezes e na última, você correndo com medo de apanhar pela demora, sobre a sua irmã, perdendo seu brinco de prata predileto. Escreva. Escreva e eu vou lembrar para sempre de cada história e ao ler, lembrarei dos seus olhos de saudade, contando cada uma delas. Escreva aí.

  Escreva sobre mim, talvez. Sobre o tempo em que você achava que podíamos ser eternos e que as suas mãos procuravam as minhas debaixo do cobertor, de madrugada, num passeio qualquer, pela avenida principal ou enquanto esperávamos numa fila. Escreva até de tudo aquilo que não gostava em mim, sobre o que nos afastou e que fez as suas mãos, aos poucos, se perderem das minhas até nunca mais se terem em lugar ou hora nenhuma. Escreva e eu lamentarei cada minuto de afastamento e no final de cada linha eu vou saber que as suas mãos já estiveram nas minhas; que as suas mãos também foram um pouco minhas.

  Conte os seus segredos para o papel, publique com outro nome, diz que se inspirou num filme, numa peça, num romance, mas me fale sobre você. Conte os meus segredos também, queira descobrir mais sobre mim, seja essa intrusa que vai absorver, anotar tudo e, depois, fugir com a minha vida nesse caderno azul de mistérios. Eu não ligo, juro. Seja a sequestradora insana, a ladra de vidas, que espalhará nossos segredos; não tenha pudor, não faça concessões, não tenha pena. Use tudo na sua escrita, ofereça tudo ao papel, não peça autorização a ninguém; sempre quis dar tudo o que eu tinha a você. O que deixou aqui foi por recusa sua. Escreva, por favor escreva.

  Escreva sobre as suas memórias, tão diferentes das minhas, sobre os meus defeitos, as minhas limitações, as impossibilidades que eu nunca superei. Escreva sobre os seus choros, os seus gozos, as suas risadas e me relembre do que eu jamais esqueceria, mas que escrito por você, ganhará outra vida. Escreva e não nos deixe passar sem registro. Fale a todos eles que eu nunca fui o homem que você esperava, mas que você me amou; fale para eles e para mim quem você era, quando eu não a entendia. Fale de tudo e eles gostarão de você, espalhe nossa vida e eu a terei, de novo, de outro jeito; de um que eu não poderei mais feri-la nem salvá-la de nada. Escreva aí e não morreremos nunca.

  Eu só peço que escreva porque, um dia,  isso tudo vira uma poeira insignificante, uma bobagem qualquer e a gente se perde e não ri, não acha engraçado e não percebe que amou, que aprendeu, que fomos os mesmos outros de sempre. Escreve para quando a dúvida visitar, a ideia de que nada de importante aconteceu, eu possa numa tarde de domingo, desesperançado e morno, deitar e ler a nossa história, não sabendo que era nossa, quando comprei, e chorar de saudade e alegria, porque a gente é personagem e vai ficar tudo lá. Escreva, porque a vida falada, a vida vivida e a silenciada doem demais, mas a escrita dói com beleza. Dói com a eternidade que só é possível, se escrita.  Escreva vai, escreva aí. E não nos mate nunca.


  


2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 07 de setembro de 2016

Prezada professora das letras bonitas
Amanda Machado

Seu protagonista de hoje fala de Itabira, uma simpática cidade das nossas Minas, que doou suas montanhas para serem parte de coisas imutáveis no mundo. Enfim, Itabira tem coisas belas além da ausência do Cauê e da guinlagem camaco.

Meu pai, na sua mocidade, passou dois anos em Itabira, e dela falava com tanto carinho, que eu cresci achando ser Itabira uma coisa do céu em minério de ferro, com suas ruas largas, calçadas com pedras grandes, ladeiras, casarios. Sua postagem hoje me fez esta viagem gratuita.

Quando minhas filhas já tinham uma 10 e a outra 12, eu acho, há um bom tempo, eu as levei em Itabira, fiz o passeio clássico, contei as histórias que sabia e outras acho que inventei (rs). Então sua crônica de hoje tem que ser comentada em versos itabiranos, da melhor universalidade do ex-amor, em Carlos, o itabirano de coração imortal:

Memória

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 08 de setembro de 2016

Caro gentil homem das belas contribuições
Paulo

A Itabira do Carlos correu o mundo, o menino crescido levou sua aldeia consigo e plantou em nós, em mim ao menos, a cidade ideal da infância. E o imaginário é assim, povoado de nomes, lugares,tempos ideais para todas as coisas. Alguém que nasce em Itabira, que vive rodeado pelas suas montanhas, terá alma de ferro.

"(...)
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
(...)

Que lindas lembranças o visitaram hoje: a juventude do pai e a infância das filhas. E no passeio com as meninas, certamente, as histórias inventadas foram as que elas mais gostaram.

E este poema? É lindo e muito bem recebido por aqui. ;)
Abraços