sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Eu não quero mais um copo da bebida que me embriaga

   Ele traz mais uma xícara com leite quente e achocolatado, tomo-a inteira, em quatro ou cinco grandes goles. No início, o doce era de arder a garganta, mas me readaptei ao excesso de açúcar e quase fui esquecendo o café forte; que tomo, agora, só no trabalho. O achocolatado que tomei na infância, foi resgatado por ele. Quando fico cansada, gripada ou apática, ele aparece com a xícara. As primeiras xícaras eu bebia por simpatia, deixava quase a metade do leite, mas o gesto me bastava, comovia, sabe? Alguém tentando aplacar suas dores, suas dúvidas ou resfriado com leite quente. Depois, eu mesma sentia que precisava do leite, quase esperava mesmo. E também do afago, do acolhimento da minha melancolia, porque diferente de tanta gente ele não me pede um sorriso ou tenta afastar minha tristeza, mas coloca-a no colo dele o quanto ela quiser ficar e do conforto de alguém que parece me deixar sempre em casa, mesmo quando estou a quilômetros dela.

  Eu tomo o leite e olho para ele, vigilante dos meus estados e, de repente:
-  Se não for amor? Se for outra coisa menos amor?

  Nunca, antes, eu havia visto amor no fundo da xícara que agora tem achocolatado acumulado no fundo. Eu poderia pedir mais leite e menos chocolate, o doce rasparia menos a garganta e, certamente, ele faria. Mas ele fazer o que eu peço, é amor? Ou não pedir é que é? Nos dois últimos goles, o leite já está morno, quase frio, mas é a melhor parte do líquido, porque o pó que não se incorporou ao leite, já se assentou no fundo da xícara e a bebida fica mais agradável ao meu paladar. Depois que acabo, ele retira com delicadeza a xícara das minhas mãos, faz um carinho no dorso delas e leva o que não bebi. Do sofá, eu vejo-o de costas na pia, com a torneira aberta, respingando espuma no chão da cozinha, ele toma o gole último que deixei para ele; parece que a minha vida inteira ele esquentou o leite e lavou a xícara. Mas quando for embora, ainda será amor? Ou ir será a resposta de que não era?

  Vou pedir para ele fazer as malas, ir embora e não me ligar. Vou pedir para esquecer meu nome, apagar minhas fotos e não me cumprimentar nunca mais, que não vá mais ao bar perto da minha casa, que não seja legal com os meus amigos e não procure saber dos meus pais. Vou pedir que leve a lata do achocolatado embora e vou voltar a tomar o café forte e sem açúcar, antes de sair de casa e depois que voltar. Vou lavar a louça, não vou mais assistir cenas na minha cozinha como se fossem parte de uma coleção de memórias. O chocolate quente não é amor.

  O Alzheimer que ameaça a minha mãe não vai embora, meu salário atrasado chega e depois atrasa de novo, a casa própria que não é minha e os impostos que não acabam, por que só o amor é que nos esfrega na cara a transitoriedade? Minha mancha na testa não acaba, minha rinite alérgica também não, nem a fome do irmão acaba, nem as guerras, nem os ódios, nem a banda dos anos oitenta acaba; mudam os integrantes e os mesmos três continuam tocando aquela canção que eu fiz para te esquecer Luiza. O Chico, o Caetano, o Gil, o Milton não acabam, o Clube da Esquina ainda toca numa rádio em Minas. Mas o achocolatado uma hora acaba, o açúcar me mata, a xícara ficará na pia da cozinha até o dia seguinte, quando eu resolver lavar.

  Acho que a xícara com achocolatado me embriaga. Porque quando eu fico bêbada, eu sempre fico boa, de uma bondade terrível que me assusta, me deixa completamente honesta, sincera, vulnerável e esperançosa. Quando fico bêbada tenho tanto amor, que deixo as pessoas ficarem, irem, serem. Quando bebo uma taça de qualquer coisa, não interfiro na vontade alheia, assisto as cenas e acho que todas fazem parte de mim desde antes do mundo nascer para mim.

  E ele vem, mais uma vez, me traz a caneca com nescau e a tomo inteira, embriagada de doce e medo. Se não for amor, eu posso aguentar, de novo? Eu só queria me curar dessa bebedeira e voltar a ser má como sou. Eu só queria não me embebedar nunca mais. Tomo as xícaras de leite que ele me prepara, não falo em malas, coloco uma música do Belchior e ele enxuga o chão que molhou. Se não for amor, é leite com nescau, faz bem tomar à noite, mesmo que eu já não tenha nove anos.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 27 de setembro de 2016
Prezada profª Amanda Machado
Que escolheu o caminho das Letras Gauches da vida (que aliás como tem pedra neste caminho)

Ando tão sorumbático com as coisas coisando neste país, que está difícil até buscar palavras, mas suas crônicas acabam por ser um farol destes que permitem ainda navegarmos.
Então queria falar que acho incrível a forma como escreve a primeira pessoa - já falei sobre isto aqui. Trás a personagem para a intimidade do leitor - isto é uma arte para poucos - a primeira pessoa é como a mulher acusada de ser adúltera a ser apedrejada, ela não admitiu isto, e ficou em pé, dentro da sua dignidade, entre dois mundos - o mistico e o humano, o espiritual e o carnal - vá e não peques mais - e ela ali - a primeira pessoa, olhou, assentiu e partiu rumo ao ... - quem sabe? Bom, são só divagações.

Falando assim, lembrei da Gilka Machado (1893/1980), poetisa carioca que publicou seu primeiro livro no Rio de Janeiro há 100 anos atrás, cujo conteúdo escandalizou a Guanabara, que esnobou a Academia brasileira de Letras, que acendeu a luz do feminismo na sociedade e por isto foi calada, censurada, vetada e colocada num canto qualquer de uma biblioteca da memória nacional. Ela também escrevia na primeira pessoa.

"Vou pedir para esquecer meu nome, apagar minhas fotos", disse a moça, daí lembrei da Gilka, cujo poema posto abaixo.

Lembranças

Teus retratos — figuras esmaecidas;
mostram pouco, muito pouco do que foste.
Tuas cartas — palavras em desgaste,
dizem menos, muito menos
do que outrora me diziam
teus silêncios afagantes...
Só o espelho da minha memória
conserva nítida, imutável
a projeção de tua formosura,
só nos folhos dos meus sentidos
pairam vívidas
em relevo
as frases que teu carinho
soube nelas imprimir.

Sou a urna funerária de tua beleza
que a saudade
embalsamou.

Quando chegar o meu instante derradeiro
só então, mais do que eu,
tu morrerás
em mim.

Uma boa semana, Amanda!



Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 29 de setembro de 2016
Caro, bom leitor de espírito inquieto e frases altamente reflexivas,
Paulo

As coisas andam coisando de maneira tão coisada, neste povoado, que nem tenho sabido dizer como me coisam, mas coisam e muito.

Enfim, para o que parece não ter remédio imediato (até antevejo um, mas parece que não reaprendemos a sua fórmula ainda), além de paciência e esperança...só as palavras (lidas, escritas, faladas...)e que bom, que bom que consegue imaginar um farol aqui. Iluminar é das ações que mais admiro. Quem dera...

Acho que tinha lido uma coisa ou outra de Gilka Machado, mas não conhecia a sua história e há muito não ouvia/lia algo dela ou sobre ela. Que bom que a resgatou (ao menos para mim foi um resgate). Passei algumas horas vagando ao encontro dela, pelos caminhos do Google...Incrível!

Obrigada pela leitura, pela partilha das impressões (sempre tão boas de ler!) pelo poema e tudo mais.

Abraços, Paulo! Um ótimo final de semana