quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Não é mancha, é o piso

  Nos fragmentos de vida que ninguém vê, nas leituras que a escola não indica, na música que ouvi uma vez e nunca mais tocou, no filme do qual eu nunca lembro o nome, nas relações que parecem não ser escolhas nossas, mas que nelas vamos ficando, conhecendo, gostando, sem querer mais sair e que depois acabam sem ensaios;  nesses lugares pelos quais passamos todos os dias sem nos darmos conta, são eles que nunca mais se desgrudam do piso da alma. Esfrega para ver se sai, passa palha de aço, a escova, abandona a marca ao tempo, descansando sob sol e paciência, nem assim, ela  sairá completamente. Porque se fixa, entremeia-se entre os poros do chão, até  fazer parte dele. Água, sabão e persistência um dia acabam e a mancha permanece. Mais tarde, nem se vê mais a marca, só se nos detivermos a isto. Daí vemos, lembramos quando a mancha chegou ali e todo o esforço empreendido em apagá-la, se não, fica como parte do piso. Sem fim nem começo, sem histórias; parte de uma estampa incrustada no cimento.

  Ele vem à noite, escuto suas frases desconexas e não durmo mais. Não chama pelo interfone, não bate na porta,  nem passa pela sala, não há barulho dos sapatos, mas chega até o meu quarto, minha cama e, finalmente, ao meu ouvido, diz que tem medo, pede para eu não ir embora, mas eu já fui e ele continua o apelo tardio. Ele não foi minha escolha, eu estava lá e não pude deixar de olhá-lo, não desviei do que me levou até ele e depois a outros tantos. Nunca desvio. Ele é a mancha no piso, que só lembro quando, sem querer, estou em cima dela e um raio de sol ilumina-a numa revelação mística.

  Eu tinha olhos escuros e eram só meus; nem do pai nem da mãe. E eu não queria ter outros. Não achava que devessem ser diferentes.  Mas quando eu vi os olhos dele, tive inveja, achei que merecia-os mais do que ele; os olhos verdes que nunca quis antes. Não fomos amigos, não foi um afeto imediato, era uma passagem, um filme do qual eu não me lembraria o nome depois do fim. Mas eu não ia embora, ao contrário, só me aproximava mais sem saber, não desviava. Quanto mais estranho ele ficava, mais perto eu era. Começaram os remédios, as internações. Dois meses, seis, ele desaparecia e a vida ao redor continuava como se ele nunca tivesse estado lá. Mas eu sabia que ele esteve, eu lembrava dos seus olhos a quase todo instante. Era doloroso saber que no tempo em que todos cresciam, ele não estava lá.  Pensava no que ele comia, nos programas que assistia na TV, na música que ouvia, nas amizades que fazia, pensava quanto tempo demoraria longe e depois, fazia como os outros, só vivia.

  A cada ida, era um volta desumanizada. Voltava sem dois dentes e um rio muito largo de distância entre ele e o mundo; só eu ainda ficava na margem do outro lado, gritando, tentando uma conversa, na tentativa de que ele não se sentisse tão irremediavelmente só, mesmo sabendo que ele era. Os olhos mudaram também, mas permaneciam verdes e eu continuava achando-os profundamente lindos. Mas ele não crescia, era uma planta da qual podavam cada broto novo, ele era um bonsai, só que não tão bonito. Do outro lado da margem, eu o espiava, mas também vivia; e, às vezes, me cansava de tentar ser a pergunta do lado oposto. Era demasiado trabalhoso, mas abandoná-lo no silêncio, eu não poderia.

  Falávamos do que podíamos, sem nunca fazermos referência ao rio, eu não podia entender, ele não saberia explicar. Eu ficava lá e ele, às vezes, sumia. Depois de um tempo maior, ele voltou quase sem dentes, com o cabelo completamente raspado e não falava mais, mas eu o reconheci pelos olhos. Aos poucos, fui distanciando as visitas, me esforçando menos em compreendê-lo, fui sendo como os outros e me esquecendo dele. Até ele ir por mais tempo, voltar sem dente nenhum e eu não chegar à margem, com muito medo do rio. Achei que a mancha havia se apagado e só.

  Eu tinha olhos castanhos e hoje os tenho verdes. Quando eu desisti da margem, ele quis atravessar. Talvez tenha gritado muito o meu nome, talvez tenha se desesperado quando se entendeu pela primeira vez isolado do mundo, tenha pulado no rio e sido levado por uma correnteza. Quando não resistiu, soltou o corpo, deixando que o caminho das águas o levasse a um destino menos árido e doloroso. Ele que foi levado não sei quando, eu que nunca mais esqueci dos seus olhos de solidão, acabo de ver no espelho os mesmos olhos verdes, que eu tanto quis que nunca se apagassem. Esse homem, meu deus, ainda conversa comigo da margem. E aquele rio se enterrou no meu peito, feito a mancha no piso, que nunca se apagará.

  As leituras que não eram da escola, a música que só ouvi uma vez, aquele filme e tudo mais que eu não escolhi, sou eu para sempre. Ele fala ao meu ouvido, eu o vejo nos meus olhos que mudaram de cor. Eu nunca quis ir embora e achei mesmo que ele fosse passar. Não passa, sou eu; dezenas de barras de sabão depois, litros de água desperdiçados e um raio de sol entra pela janela e lá está ela: a mancha, que é piso também. Não acho triste, é uma eternidade da qual eu não desviei.




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