segunda-feira, 19 de setembro de 2016

No futuro, só uma mosca pousa

   A cadeira quebrada, onde ninguém senta, continua lá, encostada na parede, para parecer que faz parte de um jogo completo. Uma sala de jantar com a mesa forte no centro, que nunca mudou de lugar, e as seis cadeiras, uma que nunca muda, porque nunca mais poderá exercer seu papel de origem. Quem limpa a casa sabe que a cadeira é decorativa, tiram-na e colocam-na, com todo o cuidado que a sua fragilidade requisita,  no mesmo lugar de sempre e, se por acaso, um visitante recente se aproxima muito e pareça  querer puxá-la, ouvirá que ela não é muito segura. Mas insegura mesmo são as outras cinco.
  A cadeira recostada para sempre na parede, não existe. É um lugar ocupado por esse sempre desconcertante cenário de papelão pintado: na frente uma bela paisagem para enganar os olhos e compor o imaginário, mas não existe de fato.
   Ninguém senta, mas ela continua lá. Simulando a possibilidade de mais um convidado à mesa.

- Tentei cola para madeira, mas não deu, tinha que parafusar de novo. O marceneiro falou que é fraca não vale a pena.

  Uma cadeira sem a possibilidade mínima de uso. Não podem subir nela para tirar uma teia de aranha do teto ou  lavar vidraças; criança nenhuma pode usá-la para uma estrutura de barraca improvisada com lençol ou seus pés para brincar de elástico quando faltar companhia;  não podem  usá-la num ensaio de dança ou circo em que uma cadeira seja parte do número. Nem para sentar ela serve; tanto faz homem pequeno ou mulher grande, criança leve ou bolsa pesada todos estarão limitados as outras cinco cadeiras. Mas ela continua lá, no mesmo lugar há anos.

  Se fosse herança de família, um presente de alguém que já morreu, talvez eu compreendesse e não me incomodasse com a cadeira falida de sentido, repousando eternamente na parede da sala de jantar. Mas não é o caso, é só uma cadeira de outras cinco, compradas em parcelas num magazine. Por que uma família a mantém? Por que as pessoas, as comidas, as mentiras, as verdades desconcertantes, os medos,  os eventos, as tragédias, os vinhos tintos, as grandes alegrias entram e saem pela porta desta casa e a cadeira permanece? Por que essa cena construída de uma sala de jantar completa quando ela não é?

  Já pensei, por várias vezes, trocá-la de lugar, enquanto ninguém mais estivesse na sala e, talvez, num acidente, numa queda, a perda fosse completa e a cadeira finalmente descartada. Mas depois desisto quando penso que alguém poderia se ferir, se constranger e a madeira nunca se quebrar. Às vezes, uma mosca pousa na cadeira e não a repreendem, porque o peso de uma mosca a cadeira ainda suporta. Mas enquanto não se importam, eu olho para a mosca, penso na família da mosca e na frequência com que ela e os outros visitam a cadeira, se forem muitos pousos, se a mosca ganhar peso com o tempo, se a família crescer, talvez um dia a cadeira se desmonte definitivamente. Não sei. Talvez não seja possível, mas me conforta os pousos da mosca e possibilidade da ilusão de uma cadeira ser assumida, ser aceita e, finalmente, desfeita.   

  Dia desses falaram em trocar o conjunto, comprar um todo novo, mudar a cor da parede, redecorar o ambiente, me animei em opinar, mas entendi que é um projeto para o futuro; esse mais ilusório que a cadeira. Nunca falei claramente sobre a cadeira vazia de utilidade, não falei também sobre o futuro que é esse recorte temporal, onde moram as coisas que queremos e não temos. O futuro, essa cadeira quebrada, encostada na parede da sala, onde ninguém senta, só as moscas pousam levemente.

  Esta cadeira que não existe e que me dói mais do que o lugar desnudo. Fosse eu, jogava a invenção fora e assumia o conjunto partido. Filhos órfãos são menos tristes do que filhos abandonados, uma viúva recupera a vida com mais robustez do que uma mulher que não consegue abandonar o marido que já se foi em alma, um telefone que não toca é menos incômodo do que um em que atendentes de telemarketing tentam vender o que nunca vamos comprar.
  Há tanto tempo essa cadeira marcando sua forma na parede, criando o sonho de um lugar a mais, fingindo completude, onde o desconcerto é bem mais familiar e íntimo da casa. Quantas cadeiras vazias de sentido, em mesas com medo do espaço vazio?




2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Prezada Profª
artesã das palavras que fiam e tecem
Amanda Machado

Fugi dos textos anteriores, pois falam de um amor mulher, destes românticos que tangenciam o real e o virtual feminino, que tanto me encantam, mas que não sei interpretá-los assim, de maneira pedagógica, visto que sou do tempo em que ensinar (e sobretudo aprender) a condição humana, proposta pelo singular Edgar Morin, era coisa sobejada pelo Estado (pelo estado das coisas e pelas coisas do estado).

Falando nisto, hoje seu texto trabalha o simbólico, e de certa forma levou-me a refletir sobre a Metamorfose de Kafka. Calma, logo logo tentarei explicar isto, da forma menos prolixa possível.

Naquele conto, com seis personagens, como as cadeiras da sua crônica (coincidência ou sincronicidade junguiana?), o protagonista é execrado pela ruptura com o sistema. No primeiro momento a família sente medo, num segundo momento o aceita, mas esconde, e num terceiro momento quer se livrar dele.

Ontem li que uma menina que trouxe à luz as questões críticas do ensino público em Santa Catarina, criando um blog divulgado em toda Pindorama, hoje está na mais cara (e não necessariamente melhor) escola do 2° grau da capital, com bolsa etc e tal, concluindo o ensino medio. Faz discurso apologético a favor do golpe, apoiou a queda do governo federal, defende as políticas públicas de educação do atual e temerário ocupante em trânsito e pronto. Na minha opinião, Virou aquela cadeira encostada no canto.

Outro dia fui a um evento social (sim, apesar de ser quase neanderthal nas relações sociais, ainda me permito sair da caverna para coisas que possam me iluminar). Uma amiga, feminista e intelectual, para lá de gente boa, me alertou para evitar um filósofo no evento. Teceu uma imagem muito ruim do sujeito. E não é que na ordenação dos espécimes, fui colocado de frente para o sujeito?
Pois bem, pensei, vamos lá ouvir o filósofo. Formação acadêmica na área, conhecedor da Europa, se auto intitula um socrático instigador clássico, porém é apaixonado pelo niilismo, e segundo suas próprias palavras, estudou Nietzsche (está certo isto?) por que segundo sua compreensão das coisas, era o mais difícil de ser interpretado por ele.

Entendi a dificuldade - a pessoa é misógina, fundamentalista cristão (caramba!) e desprovido de bom senso literário e cultural. Ao vencedor, as batatas. Ele é uma outra cadeira, só que tem a maçã do pecado original cravada nas costas como uma cruz martirizante, feito o rapaz lá do conto do Kafka.

Enfim, vou terminar para não ser mais prolixo ainda, assim, falou Amanda “o futuro que é esse recorte temporal, onde moram as coisas que queremos e não temos.” E, claro, minha mente associativa fez-me lembrar de um poema, acho, não tenho certeza, que é do Chico Buarque, depois musicado pelo Edu Lobo:

“Um lugar deve existir
Uma espécie de bazar
Onde os sonhos extraviados
Vão parar.”

A Moça do Sonho (https://www.youtube.com/watch?v=SLJKyFA_QS0)

Valeu pela paciência comigo
Um abraço
Paulo Abreu
(apedeuta e míope)

Amanda Machado disse...

Caro fiel interlocutor Paulo

Não me lembro completamente dos três últimos textos, mas suspeito que não foram todos neste caminho do amor romântico...um ou dois talvez, mas não sei se os três...será possível? rs

Que lembrança mais elogiosa essa da Metamorfose, adoro a obra. Foi, sem dúvidas, um dos textos literários que mais me marcaram e tenho pensado muito em Kafka nos últimos dias, de fato. Mas por outra história... O Processo. O desenrolar angustiante, um julgamento sem motivos, a justiça sem um rosto, nome ou referência clara, a quem o investigado possa recorrer, o entra e sai de apartamentos, reuniões, diálogos truncados, isto tudo que sempre me pareceu fruto da imaginação privilegiada do escritor, com o mesmo surrealismo de uma personagem que dorme homem e acorda barata, tem me parecido tão possível, tão palpável e atual. Kafka, definitivamente é menos surreal do que eu gostaria. Mas, enfim, sigamos. Não lembro como termina, mas a narrativa é angustiante.

E veja você, Paulo, outra coincidência, li a mesma matéria da garota do blog e por ingenuidade ou esperança exagerada, li, porque na chamada da matéria dizia algo como: "E fulana diz que está surpresa com a rede privada". Achava que a surpresa dela, era a de não encontrar diferenças significativas entre as redes privada e pública ou até de ter se decepcionado com a escola nova. Mas, enfim, logo a realidade se apresentou e entendi o quanto ela, a menina, está tragada por uma educação sem qualidade (ou com essa "neutralidade" demasiada, que alguns grupos insurgem com a finalidade de colocar em lei agora), pois seja na rede privada ou pública as mazelas refletem nas posturas dos alunos, sujeitos que devem ser bem sucedidos em contas, textos e nada mais. Achei um desperdício alguém com tanto talento para mobilização, ser só mais uma na massa acrítica.

Imagino a decepção do seu encontro...também, mesmo que evite bastante, tenho encontrado sujeitos assim, misóginos, preconceituosos, com uma estreiteza de sensibilidade desoladora, tipos que eu achava que estavam se tornando mais raros, mas não. Temo que a sanha fascista é crescente. E que os nossos bons sonhos encontrem cada vez menos lugares para pousarem.

Enfim, a prosa, como sempre, é agradabilíssima. Obrigada por ela.
Abraços