sábado, 3 de setembro de 2016

Parece que chegou numa queda

   Parece que chegou caída de um muro alto. Por isso a dor, o arrebatamento e os olhos de espanto. É fácil reconhecer que é vinda de outros lados, porque para a coisa mais banal, mais cotidiana sua atenção é  completa;  um copo com água pode fazê-la olhar por horas antes de matar a própria sede. Para cada miudeza a sua dedicação é gigante; olha para formiga andando no açúcar e acha novidade, olha para o farol que muda e espera as cores se alternarem uma dezena de vezes, antes de atravessar qualquer rua. Quando ouve chamarem um nome parece uma criança descobrindo as letras, fala devagar as sílabas, repete o mesmo nome três, quatro vezes, até se acostumar com o som. Tem medo de carros com vidros escuros, se esquiva de perguntadores e se delicia com o sol de agosto, esquentando seus cabelos, o vento de maio no rosto e a chuva de janeiro, regando desde a sua cabeça, até os calcanhares.

   Parece que chegou mesmo de um outro lugar, que acostumada demais à casa,  por curiosidade, quis ver o que acontecia do outro lado do muro, era espiar e voltar. Mas subiu, inclinou-se, perdeu a medida do ângulo e, numa queda longa, veio parar aqui. Parece, sabe?
  Parece que ninguém viu a sua queda, porque nunca vieram ao seu socorro, parece que já era tarde e todos dormiam. Despencou do muro alto, bateu a cabeça no pouso e perdeu a memória, até de chorar a pobre se esqueceu que a dor permitia. E segurou o choro, não soltou um só grito, mas seguiu em silêncio e susto, perdida; vagando pelo mundo do outro lado do muro.

  Parece que ferida a memória, não tem lembrança de amor, de língua ou família da pátria antiga, mas só sabe que daqui não faz parte. Caiu do muro alto, procura se integrar, sorri a alguns grupos, afeiçoa-se a eles, tenta entender suas filosofias, mas são distantes demais, parece nunca alcançá-los ou eles a ela; por isso está sempre mudando de pares, mas é outra cultura, outra língua. A tentativa desesperada de adaptação quase nunca é bem sucedida. Desconhece as gírias, os costumes locais, o tempo e as lembranças que não partilha com ninguém.
  Teve uma só vez que pareceu reconhecer um pedaço de vida anterior.  Na caminhada sem rumo certo, um dia, a viandante repartiu um pedaço de pão com uma pomba na estrada e se olharam. A pomba imediatamente a entendeu e ela a pomba. Nesse trecho ela teve uma lembrança, porque sorriu, sentiu-se em casa, mas logo a pomba - que é bicho arredio, que parece sempre em fuga - foi ensaiando voo  e foi embora, e ela chorou por dias a ausência do único ser que poderia lhe devolver a recordação de quem era.

  Anda por aí com os joelhos esfolados, os punhos doloridos, três ou quatro hematomas no corpo, desde o dia da queda e não reclama. Ela não nasceu aqui. Despencou do muro alto e anda apartada dos seus, que talvez sintam a sua falta do outro lado, de onde ela não sabe que veio, embora desconfie que não seja esse o seu lugar de nascimento.  E em muitas noites sem sono ou ao meio-dia, de um dia qualquer, escuta um chamado, numa voz suave que o coração reconhece, mas a memória perdeu no dia do acidente; e ao ouvir o som antigo sente uma melancolia tão doída, uma saudade tão justa e sufocante que revive as mesmas dores do dia em que caiu do muro alto.

  Às vezes dá vontade de oferecer ajuda e tentar seguir com ela até achar uma saída para o outro lado, mas tenho medo que a perdida também não tenha sido feliz do lado de lá do muro. Por isso, vejo-a nestes dias de lua e solidão, triste, andarilha de um caminho sem fim e não pergunto, não a interrogo, nem tento resgatar seu passado. Prefiro imaginar que ela era contentíssima antes de subir no alto muro e que a sua desolação, um dia, sozinha, se dissipará nas bainhas do tempo.

  É uma estrangeira, caída de um muro alto, condenada a andar por aqui, solitária, ferida e para sempre assustada. Dizem que, sem saber, ela procura sempre a saída, o caminho que a leve para o lugar de onde veio. Para o muro não pode voltar, porque depois da queda se esqueceu como subir. Parece que chegou numa queda de um muro alto e ninguém nunca ofereceu um esparadrapo ou um gole de água com açúcar. Do lado de onde ela veio traz umas mãos frias, um rosto pálido de tristeza e solidão, mas uns olhos tão bonitos de susto e surpresa que quem a vê tem vontade de esquecimento de tudo aquilo que já viu na vida. Parece que chegou numa queda e ninguém aponta a direção, porque a querem para olhar a vida suspensa noutra pessoa. Por maldade a ela ou por redenção de quem a vê, não lhe curam os joelhos, nem dizem que as formigas são atraídas pelo açúcar, porque assim sempre foi.

  Parece que chegou numa queda de um muro bem alto, mas que logo se levantou, passou as mãos nos joelhos sangrando, tentando tirar um pouco da terra marrom, que misturou mais com o seu vermelho. Ajeitou a saia na cintura e deu os primeiros passos ainda muito manca, desequilibrada de ordem e rumo. E desde a queda, ela anda, seguindo estrelas, descobrindo palavras novas, mergulhando em copos de água e perdida de familiaridades, tenta se reconhecer num mundo que não é o dela. A imigrante caída do muro só mata sua sede depois de muito olhar o copo, gosta de silêncio e ainda busca a pomba que encontrou certo dia. É uma perdida de si e dos seus, que todos os dias sai a procura do que ainda não sabe.




2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, domingo, 04 de setembro de 2016

Prezada Professora da mais e cândida quintessência das escritas
Dona Amanda Machado

Graças à postagem deste domingo, portal de setembro, perdi para eu mesmo (mim não gosta muito de perder) a aposta que fiz referente ao fato que sua senhoria, em sua talentosa e rebuscada escrevescência, faria desta crônica a trilogia clássica em consoante aos dois últimos contos, estoicos, plenos de um "amor fati".

Mas não era nada disto. Apresenta hoje uma crônica enebriante, sobre a percepção do outro. A dor do outro, a angústia do outro. O outro que há em nós, de quem fugimos tanto quanto nos aproximamos, num motocontínuo que chamams de vida.

Todos temos problemas e na maioria das vezes sem solução. É isto aí!

Feliz setembro

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, terça-feira, 06 de setembro de 2016
Caro muito atento e perspicaz leitor/escritor/mediador Paulo,

que felicidade surpreendê-lo! Digo, que bom que posso ajudá-lo a perder suas apostas (perder para nós mesmos, vezenquando, é muito bom também. Até porque não perdemos completamente quando o nosso concorrente somos nós). Talvez a trilogia (como você bem chamou do "Amor fati") tenha se perdido no caminho, a postagem apareça noutra sequência....ou não seja trilogia.

Sim. Todos temos problemas insolucionáveis e é sobre eles que acabamos passando tempo demais debruçados...rs

Um feliz setembro, Paulo!