domingo, 16 de outubro de 2016

A mulher que enfrentava os trovões

  Vai chover. Não vi a previsão, o céu não parece tão escuro ainda, mas vai chover; com toda certeza. Se saísse agora levava o guarda-chuva e ele não voltaria seco para casa. Eu sei da chuva, porque a mulher apareceu há pouco na varanda para recolher as roupas do varal. Separa as secas das quase secas, guarda os pregadores numa cesta azul muito desbotada, acaricia com o pé o cão deitado perto de um vaso de planta quebrado e dá batidinhas carinhosas nele, como se quisesse despertá-lo. As roupas um pouco molhadas ela estende em um varal pequeno na parte coberta da varanda. Se vier chuva com o vento muito forte, ela abrirá a porta e virá recolher estas também. É assim; tem sido há muito tempo assim. O cheiro da chuva eu ainda não sinto, mas o cheiro do amaciante nas roupas que ela recolheu chegam no vento.

   Atrás dos tijolos  vazados mora a mulher. Para mim, ela é quem está dentro deles, para ela, sou eu quem está fora. Somos desconhecidas e estranhamente familiares. Conheço seus passos, a sutil modulação da sua voz, que é uma quando fala com o cão, outra quando fala com o carteiro, uma para os vizinhos, a voz que fala com algum parente ao telefone, a do companheiro e a outra, menos audível, quando fala consigo. Conheço seus hábitos, sei que acorda antes das seis, que chega à academia antes das oito. Que come meio papaia antes de sair de casa, que leva um lanche preparado na noite anterior pelo marido, quando depois da academia vai ao médico. Que tem diabetes e hipertensão. Que assiste aos programas de mudança de estilo da TV por assinatura e que chama o marido de "céu". E este é dos apelidos românticos mais bonitos que eu conheço, porque penso num amor ilimitado, livre, alguém que não a poda, não a define, não a impede de circular como gosta, pelo contrário, amplia os voos dela. E Céu é paciente, um homem azul.

   Céu e Filho, que é o nome do cachorro, são as companhias que nunca a abandonam, são as duas pontas do seu triângulo de equilíbrio. São eles que a recebem depois do trabalho, que a protegem do seu medo de estar sozinha à noite, são eles que atendem, primeiro, aos desconhecidos à porta, que a circulam quando ela olha  fixamente para algum lugar que eles parecem temer, ambos a resgatam do pensamento que preferem manter longe da casa deles. É um trio alegre, silencioso, leal, e calmo. Parecem tripulantes antigos de um navio; cada um com a sua função, sincronizados e dispostos a ultrapassarem qualquer tempestade no meio da viagem. Só Filho parece quebrar a harmonia, quando os trovões vociferam antes da chuva. Mas a mulher já sabe e o acolhe como a um bebê nos braços magros.
   Eu a vejo, quase sempre, atrás dos tijolos recortados e nos olhos castanhos, gigantes,  que ocupam cada buraco da parede que nos divide, eu acho que já vi um pouco do que só Céu e Filho são capazes de afastar das lembranças ruins dela.

  Primeiro eu soube do hospital psiquiátrico, uma vizinha me contou, uma vez,  quando fazíamos unha no salão da rua debaixo. Eu lia um livro-reportagem sobre um hospital psiquiátrico desativado e ela me contou que a vizinha ficou por um período internada, não nesse, mas na mesma cidade desse. Quando soube do hospital psiquiátrico foi surpresa, dor e encantamento. A mulher que eu conheci tão bem,  num hospital de loucos? A mulher que é só calma e voz baixa, exilada do seu paraíso, apartada do seu Céu? Ela tem mais de sessenta anos, portanto de uma geração que a saúde mental tinha outras abordagens, então não me assustou o fato em si. Mas saber que ela tinha uma história anterior àquela que eu conhecia tão bem, antes do meio mamão, do Filho, dos programas de TV, da roupa lavada, estendida e recolhida antes da chuva, acho que fui surpreendida por essa possibilidade das pessoas que conhecemos tão bem , de repente, se tornarem outras, por uma indiscrição de alguém, um fato novo resgatado, uma parte de vida que não é vista através dos tijolos.

  Eu já me esquecia do hospital, quando a segunda história me abordou do mesmo jeito que a primeira, num lugar improvável, com outra vizinha.  Na fila do supermercado do bairro, ela conversava com uma recente moradora da rua e fazia uma rápida apresentação dos moradores mais antigos, as profissões, o estado civil e traços da personalidade de cada um. Até chegarem ao assunto que pairava no dia, a tradição de oferecer doces em comemoração a dois santos irmãos, a vizinha fazia um pequeno mapa das casas da rua que distribuíam as lembranças e  das razões de cada uma delas: promessa pela saúde do filho, pela gravidez de risco bem sucedida ou por uma  muito esperada, pelo nascimento de gêmeos e desta vizinha, ela parou um tempo, acho que analisando se falava ou não. E em uma voz mais baixa, sem muitos detalhes falou da morte do seu filho ainda pequeno, em um acidente em casa.

  Nenhuma das duas histórias eu soube mesmo, com certeza, da veracidade. Também não busquei mais informações ou datas. Eu cheguei muito depois de tudo, quando eu a conheci ela já era a outra, a mulher sem filho e de saúde mental fragilizada.  Possivelmente, nasci anos depois da perda, da internação e de uma provável luta e redenção diárias. Aquelas histórias não eram nossas; só dela. Mas mesmo assim pareceram explicar tanto e me aproximarem ainda mais da vizinha por trás da parede de tijolos vazados. Toda vez que ela sai para recolher as roupas eu penso no filho que a ajudaria a levá-las para dentro da casa. Sempre penso numa criança, mesmo que ele fosse mais velho do que eu sou hoje.

  A chuva aumentou e eu fiquei esperando que ela saísse da casa até a varanda para recolher as peças que estavam úmidas, como ela sempre faz, mas hoje à tarde ela não veio. Ventou muito, as roupas na varanda ficaram encharcadas, uma camiseta o vento carregou e ela não apareceu. Depois de anos, ela muda a ordem de uma das coisas.  As coisas, pessoas, o clima, o cão,  todos mudam. Só eu ainda sinto o cheiro do amaciante e confio nas previsões climáticas da mulher atrás do tijolo vermelho.

  Olho para o céu e percebo que a luz de hoje não é a mesma de ontem, eu também não sou. E isto é desesperador e ao mesmo tempo, consolador. Antes dela já existia a loucura, mas não a desde tipo, com olhos castanhos, atrás do tijolo recortado, que sempre sabe a hora da chuva e enfrenta os trovões com o Filho no colo. A roupa no varal que ela não resgatou é só mais um sinal de que nada nem ninguém permanece infinitamente o mesmo. Na amplitude de um céu é onde cabem as possibilidades de uma pessoa. O Céu e o Filho devem estar na sala ao redor dela, agora, abandoná-los por meia dúzia de roupas velhas não valeria o esforço. Amanhã cedo ela recolhe o que ficar no varal e busca o que o vento levou. Ela sabe que há perdas muito mais difíceis que uma camiseta levada pela tempestade.

 


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