sábado, 22 de outubro de 2016

A nobreza está toda no canino da rainha

    Enganados; o tempo e ela. Esgotadas; a atenção dos outros e a solidão que a persegue pela cidade. Marcados; a pedra solta na calçada e os olhos que atravessarem  os dela. Frágeis; as relações entre desconhecidos e as articulações dos joelhos dela. Instáveis; a bengala na mão direita da mulher e a vida que escorre entre as frestas dos ladrilhos, sem conseguirmos deter. Acostumados; as mãos que guardamos nos bolsos do casaco e os passos em falso dela. Urgentes; os sapatos e os caminhantes.  O que não podemos perder; a fé nos outros e os nossos dentes pela rua. O perdão; uma mentira na maturidade (na infância também) e a descoberta do outro, depois de um grito.

   Chegou num barulho. Não à vida ou à rua, mas até mim. Nem sempre podemos precisar como os outros nos chegaram, porque quando nos apercebemos deles, já estão ali há minutos, dias, décadas e não faz mais sentido saber como vieram. Nem pensamos nisto, até eles não estarem onde achamos que sempre estiveram. Às vezes nos esforçamos muito para saber dessa chegada marcada, quando já foram embora. Como quem tenta retomar um livro ou filme do início, porque o final  confunde - quem sabe as pistas para o fim, estejam lá, na primeira página, na cena de abertura? E retomamos o que podemos, sem nunca saber se a primeira lembrança é, de fato, a  página número um ou a cena de início.

  Mas da chegada dela eu me lembro, sem esforço. Foi num barulho oco, seco, de coisa resistente, batendo em outra coisa muito dura. O som do encontro entre dois pares de chifres, sabe? Não sei se eu já ouvi, mas foi isso o que me pareceu. Duas coisas de um mesmo material seco e oco chocando-se. Então, virei para trás e vi um fio de sangue na calçada. A segunda lembrança da sua presença -  o sangue jorrando discreto, fino, quente e vermelho. Eu ainda olhava para a linha bordô no chão cinza, enquanto as pessoas no ponto de ônibus se aglomeravam para ajudá-la. Não consegui ver seu rosto por muitos minutos, eram tantas mãos que a seguravam, tantas vozes a abafarem a agudeza da dela, eram tantos ouvidos que acolheram o seu grito, após o encontro dramático entre os dois pares de chifres, que eu fiquei de longe, tentando só não atrapalhar o resgate. Dois rapazes a levantam,  uma menina recolhe o óculos dourado que caiu no asfalto e a bengala, que não a salvou dessa vez, caída na porta da loja de departamentos, depois, a moça da carrocinha de pipoca chega com um banco de plástico, ajudam-na a se sentar e, finalmente, eu conheço o rosto dela. O grupo se abre para ela respirar e os corpos descortinam a grande personagem no centro.

  Sentada no banquinho branco, num ponto de transporte urbano, em frente a um grande hotel, cuja porta não se abrirá para ela, tampouco para qualquer um de nós no ponto, ela tem um rosto sereno e tenta responder às perguntas, com o máximo de coerência. Acho que quando estamos acidentados, doentes ou senis, sempre tentamos demonstrar o máximo de segurança com as palavras. É como se fosse imprescindível que os outros entendam que a fragilidade do corpo não afetou o raciocínio. Ou quando bebemos e, embora o hálito seja de álcool, não estamos bêbados e queremos deixar isso claro para o interlocutor abstêmio, procura-se tanto as melhores frases, que a demora nos faz mais doentes, velhos, estropiados e embriagados sob os olhos deles. Ela responde, assim, em longas pausas e sílabas lentamente semeadas.

  Estacam o sangue do supercílio da acidentada, a moça que recolheu bengala e óculos, agora, traz o gelo, que arranjou em um comércio próximo, numa sacola de plástico e a colocam em um dos punhos da mulher. Abanam, perguntam, consolam, acolhem, tratam-na como uma rainha em seu trono de plástico emprestado. Aos poucos o sangue para de brotar, o punho parece melhor, dois dos rapazes que a socorreram já tomaram o ônibus, a vendedora de pipocas recomeça a atender aos pedidos. Os súditos começam  a se dispersar. Ficará a rainha solitária de novo?

  Só um dos cavalheiros fiéis se mantém ao lado da mulher, ele tenta um táxi que não para. Atrás dele, um carro comum, que encosta na calçada, o motorista abre o vidro e pergunta se pode ajudar. O cavalheiro explica o caso da frágil dama e ele se oferece para levá-la ao hospital ou para casa, ela é quem sabe. Alguns súditos voltam para se despedirem, ela parece não querer ir embora e começa a chorar. Perguntam para ela se sente dor, se está com medo, se tem o telefone de algum parente próximo, as mesmas perguntas de quando ela assumiu o trono e ela parece se acalmar ao responder todas de novo. Mas agora tem um fato novo, reclama de um dente que perdeu na queda e diz que não pode ir embora sem ele.
- É novo. Nem está pago ainda.

  Mais solidários se aglomeram, alguns consolam, outros dão indicações de bons dentistas a preços mais acessíveis e um grupo procura, pelo chão, o dente que falta no sorriso da rainha. Perscrutam cantos, vasculham reentrâncias, pedem licença e buscam entre os pés de todos os homens e mulheres, do ponto de ônibus, indícios do precioso dente. Sentada no seu trono, cercada novamente pelos súditos, ela sorri sem um dos caninos. Está feliz de novo. Eu que a observo desde a queda, percebo que ela esconde algo na mão esquerda. Antes da busca eu já havia notado, que quando seu escudeiro se afastou dela para chamar o táxi, ela retirara um dente e o segurava em uma das mãos. No início não entendi, mas agora eu sei, que o dente é a sua mentira perdoável.

  Com o dente nas mãos, escondido, apertado, a mulher tinha mais uns minutos de atenção. Olho para a velhice dela e acho que é minha, por uns segundos sinto o dente fincar na minha mão. Não sei se pela solidão, pelo humor, pelas pausas entre as palavras, se pelo desejo de verem-na como ela realmente é ou se pela fragilidade; ou por tudo, caminho em direção àquela velhice, se tiver outra será por um tropeço. A velhice dela anuncia a minha própria. Não demora. Eu sei. Qualquer dia desses, serei eu a rainha com um dente escondido nas mãos, brincando de esticar o tempo.
  Quando ela caiu, eu soube, só pelo barulho oco, que era forte não somente o corpo, mas toda ela. Feita de matéria que não se dissolve, porque é dura, vai ser pó um dia e se dissipar no vento, mas sumir por completo, isso não. Quando dois pares de chifres se tocam resulta nesse som áspero, oco e seco de duas teimosias que nunca se entregam: o tempo e a dona dele, a rainha.




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