quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Aprendendo a chuviscar

   Não. Ela nem olhou para mim. Nenhuma vez sequer. Nunca a tinha visto antes, ela não me pediu ajuda, não me perguntou as horas nem se ofereceu para segurar a minha bolsa. Mas eu a vi assim que entrei no ônibus e durante todo o trajeto eu só olhei para ela. Aqui em cima é muito frio, às vezes a diferença daqui para o Centro são de dois ou três graus. Hoje choveu quase o dia todo, aqui em cima está escuro e uma névoa branca cobre os prédios no meio do Campus. Cai uma chuva fina, mas não abro o guarda-chuva, prefiro caminhar com as duas mãos no bolsos do casaco. Quando eu chegar do outro lado, o cabelo vai estar molhado, mas as mãos vão quentes; hoje eu vou assim.

  Então vem o ônibus e a moça está nele. Escolho um lugar no fundo, próximo à porta e fico em pé, esperando a hora de descer. Alguém pede licença, eu tento abrir espaço, um homem esbarra sua mochila, me arrasta um pouco, mas eu volto para o mesmo lugar. Sentada no banco próximo à janela, com fones no ouvido e cabeça no vidro, ela suspira profundo e eu escuto. Ela não me viu, eu não sei seu nome, mas compartilho da intimidade de um suspiro e por isso não a abandono mais. Eu olhava para o cabelo dela, curto, muito curto e passava a mão no meu, molhado de chuvisco e longo, de um tamanho que eu não tenho gostado mais. Ainda olhava o cabelo, quando vi uma gota cair do seu queixo e se enterrar no seu colo, aprofundei mais o olhar e vi que ela chorava. Mas era um choro tão contido, tão delicado, que eu tive que procurá-lo, examiná-lo por alguns segundos para ter certeza de que era um choro mesmo.  

  O rapaz sentado ao lado dela não percebe suspiro, choro ou o cabelo curto da moça. Ele está impaciente e bate com os dedos no encosto do banco da frente, esfrega as orelhas, olha para a tela do celular a cada dois minutos e meio. E a moça ao seu lado chora silenciosa, molhada, mas quieta, sem nunca pedir um lenço ou uma palavra que a console da dor. Por isso acho que não consigo desviar mais a minha atenção, estou perdida nessa fragilidade pública e força tão íntima, sozinha ela sustenta sua dor e não esconde o rosto molhado. A cabeça, até o final do trajeto, irá erguida.

  Ela passa as músicas no celular, deve estar procurando uma especifica. Para na quarta música, solta os braços em cima da bolsa e chora livre, solta e completamente confortável em ser ela.  A chuva lá fora, as janelas embaçadas do vapor da respiração dos desconhecidos e o choro dela desce com calma. Tem cenário e agora uma trilha selecionada para acompanhar as lágrimas desaguarem. O cabelo é lindo, eu já disse que é muito curto? Então, repito, muito, muito curto, daqueles que poupam os vinte minutos diários de uma pessoa que insiste em fios longos, daqueles que roubam a atenção pela ausência, daqueles que deixam o rosto completamente descampado, que revelam as expressões de uma pessoa.

  E depois do suspiro e do cabelo, me prendo ao choro. Eu queria aquele choro para mim. Hoje, além das mãos quentes, eu queria chorar daquele jeito. Silenciosa, calma, sem alarde e entregue. Tento aprender com ela esse choro, porque eu não quero outro, quero o dela, só o dela me acalmaria, só a um choro como o dela eu me entregaria hoje. Olho para as mãos, o lugar delas, o jeito dos braços, o rosto no vidro, para a gola do casaco dela e tento imitar. Quem sabe assim o choro não vem? Procuro meus fones na bolsa, mas não os encontro, sem música eu poderia irromper em choro? Em pé, também daria? Mas para esse choro tem um sentimento que eu não carrego nesta bolsa, a esta hora. Uma pessoa com raiva não choraria como a moça, alguém contrariado também não, com urgência, pressa ou fome não alcançaria aquela mansidão molhada dela. Mascar chiclete também não ajudaria, a pressão na mandíbula não nos deixa relaxados, para chorar, de verdade, precisamos nos livrar do chiclete primeiro.

  Não queria ser a moça feliz com o cachorro no Instagram, a mulher do corpo dourado na praia que eu nunca fui, a sorridente com a taça na mão numa festa de desconhecidos elegantes. Não queria ser a famosa loira, a dona de um vestido que meu salário nunca poderá comprar ou a atriz com um seguro milionário,  eu queria ser só a moça de cabelo curto, com o cachecol listrado, o casaco bege e água nos olhos. Eu abriria mão de todas as fotos alegres, que passaram por mim, hoje, por aquele choro. Eu moraria num choro assim, se pudesse. Dou o sinal e ela se levanta, descemos no mesmo ponto. Começo a segui-la. Preciso aprender o seu choro.

  Ainda cai uma chuva fina, mas ela também não abre um guarda-chuva. Sobe a rua com os fones no ouvido e eu subo  atrás dela,  mas diminuo a intensidade dos meus passos para deixá-la livre, sempre a minha frente. Segui sim, persegui, imitei seus passos, seus gestos, fui atrás da moça para aprender a chorar; fui até o final do caminho, porque queria ser um pouco como ela ou ela inteira. Ela entrou duas ruas antes da minha, ainda a vi abrindo o portão do prédio, porque eu queria saber onde ela morava. Vi as luzes do apartamento do segundo andar se acenderem e a imaginei deitada no sofá, enquanto eu terminava de subir a rua. Joguei o chiclete no lixo e subi bem devagar, no escuro, na chuva e com as mãos quentes no casaco. 

  Foi quando dei a primeira volta da chave no portão que a primeira lágrima caiu. Eu não tinha música, cabelos curtos ou cabeça no vidro, mas eu também chuvisquei. E entrei calma, silenciosa e vermelha no apartamento. Acendi as luzes e chorei no sofá, ouvindo o meu próprio choro. Hoje, na volta para casa, eu reaprendi a molhar os olhos sem fazer alarde; eu chorei sozinha no claro, sem me esconder de mim e pode parecer loucura, mas me encheu de contentamento, o choro copiado e seguido em lição. Chuva branda molha a terra, sem os estragos de um temporal, o choro leve agua a alma, sem as fissuras da mágoa desesperada. Para choro de chuvisco não pode ter raiva, ódio, pressa, fome ou chiclete, a moça de cabelo curto, fone nos ouvidos, cachecol listrado e andar apressado foi quem me ensinou a arte de chover pequeno.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 07 de outubro deste ano vigente

Prezada Amanda Machado
Maestra das miudezas dos sentimentos humanos

LI mais cedo sua crônica. Li com os olhos de estar diante de uma dor temporal no sentido secular, sem lastros, enfim uma dor laica.

Qual seria a primeira dor que sentimos ao longo da vida? E a última dor? Como mensurar isto? Nesse percurso entre o nascimento e a morte, esta angústia perpétua e originária de todos os movimentos pelo caminho de uma ascensão a que? Para que? Porque?

Aquelas lágrimas não vieram sem um terreno fértil onde puderam ser plantadas e colhidas, e aquela moça que era sorridente ontem (talvez – especulações fazem parte) e a que está ali, lacrimogênia, como partirá para o seu futuro, neste universo de opções cibernéticas cada vez mais reduzidas. Hoje somos um ID a ser descoberto na nuvem de um poder total, absoluto, invisível, não divino, mas transformador (para o bem ou para o mal).

A protagonista da crônica, entre brumas (feito Avalon?) perseguiu a dor da outra? Não – não fez isto. Ela perseguiu um sentido para entender a sua própria dor, a sua angústia pessoal entalada, atravessada, lacrada com o selo da personificação do bem estar geral para os outros. Chorar para si e sorrir para o mundo - nada mais inútil.

Por quê esta necessidade biológica, natural, das lágrimas? Deve ter sido duro para a protagonista ouvir uma voz interior perguntando sem parar enquanto seguia as lágrimas da outra. E ela própria respondia automaticamente para se acalmar - Para elas rolarem ali, límpidas, transparentes, para que a alma estivesse sendo torcida e dela retirada toda a angústia, por que houve uma tensão interna que resultou neste escape da tensão.

Paulo em carta aos Coríntios, em determinando momento escreve – “Tudo me é permitido, mas nem tudo convém. Tudo me é permitido, mas eu não deixarei que nada domine.” E Lacan, no século XX trouxe à luz uma explicação, que eu particularmente acho que sedimenta o pensamento paulino (e que aqui os psicanalistas não me crucifiquem, até mesmo por que não o sou) – “O desejo é sempre o desejo de outro desejo”. Enfim, o desejo humano é algo sempre adiado, é para ser deixado lá, em algum lugar atemporal.

Chorar ... penso no poema do genial Roy Orbison, musicado pelo próprio
Crying
I was all right for a while
I could smile for a while
Then I saw you last night
You held my hand so tight
When you stopped... to say hello
You wished me well
You couldn't tell

That I've been crying over you
Crying over you
And you said so long
Left me standing all alone
Alone and crying, crying, crying, crying
It's hard to understand
But the touch of your hand
Can start me crying

I thought that I was over you... but it's true, so true
I love you even more than I did before
But darling, what can I do?
For you don't love me
And I'll always be
Crying over you, crying over you

Yes now you're gone
And from this moment on, I'll be
Crying, crying, crying, crying
Yeah, crying, crying over you


Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 09 de outubro de 2016 (madrugada)

Caro Paulo,
O homem mais preciso nos apontamentos(até quando acha que se perdeu numa explicação, não se perde. Nunca.)

Li umas tantas vezes as suas considerações contribuições/interlocuções/reflexões e está tudo lá e muito melhor escrito e mais claro. Li cada parágrafo seu aqui, assim, como sempre faço, interiorizando, descobrindo, tentando não perder nenhuma palavra, nada. Sorvendo até o último gole.

E é bem verdade, me parece que a perseguição empreendida pela protagonista não era em busca da dor ou das lágrimas da outra, mas o entendimento da sua própria e vontade de trazê-la à superfície.

E que bela contribuição do Paulo, do outro, do bíblico, que você lembrou bem e numa conexão que eu jamais seria capaz de fazer: com Lacan!!!
E tive que ouvir Roy Orbison...maravilhoso!

Obrigada pela conversa, Paulo. Um ótimo domingo!