sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Até o último passo de dança

   Existe um tempo, um minuto ou, se tivermos mais sorte, algumas horas; num lugar ou, até, em alguns, em que o que somos parece estar completamente equilibrado com as forças do universo. Sem esforço, sem estratégias, sem nem pensar se é um desejo nosso ou não, sem a necessidade de lembrarmos do caminho até lá, porque misteriosamente pousamos e vamos embora, sem poeira nos sapatos, sem feridas nas asas. Livres dos vestígios que poderiam nos ensinar o caminho. Chegamos porque há um lugar que nos pertence e é tão magicamente nosso que ninguém mais poderia tomá-lo num assalto, numa briga ou numa disputa legítima que fosse. Porque é nosso e só. É uma plenitude que até sabemos que não é infinita, mas há o consolo da possibilidade da volta. "Vai acontecer de novo. Sempre pode". E nesse estreito e oculto tempo, lugar sem nome ou localização precisa, estamos inalcançáveis para o mundo que nos rouba cada dia futuro.

  Elas descem juntas a rua, uma tem muita dificuldade de locomoção, as pernas falham, ela encosta num muro ou portão, respira um pouco, retoma a força e volta à descida, é a determinação que desafia o corpo. Articulada,  fala bem e os pensamentos são tão ágeis e frescos que a fraqueza física parece não limitar. A outra já é bem resistente fisicamente, ajuda a mais debilitada, carrega sacolas, varre a rua, salva o cão de um atropelamento por dia, mas não é muito de falar e, às vezes, penso se ela compreende quando falam com ela no portão, porque a outra sempre grita a resposta de dentro da casa enquanto ela repete; é o eco da outra. Porque naquela casa uma voz é pelas duas.

  Descem e tomam o ônibus, o mesmo que o meu. Recebem a ajuda dos outros passageiros quando sobem. Sentam-se com as colunas eretas, em posturas impecáveis e sorriem para o motorista quando se acomodam, uma tem o sorriso mais aberto e duradouro do que o da outra, acho que é porque fala menos, aprendeu a comunicar-se mais pelos gestos, pela face. Conversam um pouco entre elas e param dois pontos antes de mim. Irão dançar a manhã inteira. Uma ficará sentada, assistindo a outra, dando comandos, batendo palmas para a marcação da coreografia. Vai incentivar, estimular os passos, mas não poderá se levantar. Mas num minuto fechará os olhos e repetirá a coreografia em um lugar onde os pés não sejam frágeis e as pernas não a abandonem. Ela também dança, mas só elas sabem o que ninguém pode ver.

  São companheiras, amantes, namoradas, um peculiar par que se segura nas pernas fortes de uma e na voz equilibrada da outra. São parceiras há mais de quarenta anos, só as conheço há dez, mas não me lembro de outra coisa feliz assim, nas minhas passagens, que já não fossem elas.  Há tanta ternura ali, naquela casa do final da rua, há tanto cuidado, gentileza, há rosas vermelhas no jardim, cheiro de hortelã e alecrim da varanda, latido rouco do cão, a voz que grita as respostas de dentro da casa e, ainda, a dança secreta três dias na semana, que passo em frente ao portão delas e atravesso esse espaço e tempo misteriosos, onde a plenitude fica guardada; tudo ali parece me pertencer. Não de uma pertença egoísta, possessiva, mas de comunhão, um pertencimento de identidade, de saber que os cheiros, as vozes, as limitações e resistências que moram naquela casa, são como as minhas. E se passo, e a salva vidas do cão lava a calçada e a outra, a da palavra, observa do sofá, por alguns segundos eu penso que tudo está certo, que não há perigo, medo ou que os dias acabam e os sonhos não chegam.

  Três dias da semana, elas entram numa escola de dança que tem ainda os seus nomes no letreiro, não ministram aulas, não recebem aplausos, não ajudam a dilatar as sapatilhas, nem ensinam a afinar o gesso da ponta. Mas seguem num ritual acostumado e completamente novo, onde o corpo de uma é capaz de embalar as duas e as vozes moram numa só garganta. Talvez num plié ou grand plié, num tendu ou pirueta a mulher da voz, quando fechar os olhos, sinta que o tempo parou num lugar em que ela está de novo conectada com quem ela nunca pode deixar de ser. E a mulher calada que dança em meia-ponta e segue as indicações da outra, por um segundo, empresta o seu corpo para a sua amada de novo rodopiar.

  É hora do almoço. Desligam a música, compram abobrinhas e taiobas no mercado ao lado da escola e esperam o ônibus, em que eu não estarei. Há um lugar, um tempo estranho, sempre a nossa espera, pode ser antigo, futuro, pode até não ser nosso, mas vai nos pertencer quando fecharmos os olhos e o sopro da plenitude aparecer. Não importa se o corpo falha ou se a voz é mais fraca. Há um pertencimento que não mora em nós, mas que nos encontra sem muito esforço, é mistério, caminho que não deixa poeira nos sapatos e voo que não machuca as asas. Esse lugar desconhecido é a casa da esquina, a escola de dança ou o lugar que ainda não chegamos, mas que já nos espera.



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