quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Foi a bolsa e tudo o que tinha dentro

   Levaram o que puderam, sem tempo de negociação, sem a possibilidade de nenhum apelo afetivo. Não era madrugada nem longe de casa estava. Ali mesmo, duas ruas antes da minha, três da tarde e os dois meninos levaram tudo. Por um segundo achei que eles desistiriam, quando o primeiro segurou a bolsa e outro apontava alguma coisa na minha cintura, eu ainda busquei os olhos deles. A súplica de ser humanizada, a quem, possivelmente, negam isto todos os dias.

  Já passa das quatro, sentada em um lugar que nunca tinha vindo antes, lisa, sem nem uma sacola para enganar as mãos de deserto. Quando foi a última vez que não tive nada para carregar? Há quanto tempo não tenho absolutamente nada? Possivelmente a vida inteira, mas me engano com as bolsas e seus zíperes, as carteiras e os seus vários compartimentos, os números, as senhas, não valem nada, mas arrisco a chorar porque as perdi. Olhando para os pés, esperando por um formulário. Tenho sapatos. E isto já é consolo maior do que uma sacola. Tive pavor a vida inteira de ser assaltada e ficar despida de sapatos. Uma só vez fui forçada a andar por uma longa distância descalça. Eu era criança e  levaram os meus chinelos do guarda-volumes do clube - sem deixarem um outro no lugar -  andei pelo bairro, tomei o ônibus, subi toda a minha rua descalça, os calcanhares lavei com água e sabão, mas a sensação de vergonha e vulnerabilidade, ainda lembro quando me imagino descalça pela rua.

Não levaram o sapato.

  No formulário, descubro que perdi menos do que poderia, não tinha relógio, nem corrente de ouro, nem brinco, nem pingente. Olho para o teto com uma mancha verde de mofo, espero uma goteira dali e tento lembrar o que tinha na bolsa. Buscar na memória o que se tinha, para saber ao certo o que se perdeu. Passamos a vida a fazer isto. Só perde quem busca lembrar o que teve. Uma carteira vermelha, dois cartões de banco, minha identidade, CPF, título de eleitor (achava que já o tinham invalidado antes, mas carregava), duas carteirinhas de convênios médicos, duas notas, algumas moedas, algumas fotos três por quatro que eu não quis usar e fiz outras depois, o celular e talvez uma medalhinha e uma folha de louro, a primeira para trazer proteção e a segunda para atrair prosperidade. Levaram minha bolsa, a proteção mística e a possibilidade de, algum dia, ganhar mais do que tenho gastado. A balança nunca me favorece.

  Uma gota cai do teto e para direto num balde cinza, já com água, porque faz barulho quando cai. Há quanto tempo aquela água escorre do verde do teto? Não olho mais para o relógio, as gotas começam a contar o meu tempo e as vezes que me levaram tudo. No formulário não está o chinelo que eu perdi em 1990. Não está lá também  minha história de voltar para a casa descalça e com um nó na garganta, completamente desprotegida. Não está também as noites que me roubaram, todas elas, pelas dívidas, pelos medos, pelas angústias, pela raiva de ter me calado, pela  vontade alegre do dia seguinte, pelo emprego novo, pelo curso novo.

  Levam tudo e não impeço. Algumas vezes até me adiantei em desapegar, sem teimosia, só renúncia de cansaço.
- Deixa para lá, vou brigar por isso não!
O ladrão nem tem o trabalho da ameaça, de apontar a arma, de lutar, eu embrulho para presente e ainda desejo boa sorte. Por fraqueza, pela voz que acaba faltando, por prever a solidão da resistência. Levaram a luz que entrava no meu quarto, quando levantaram o sexto andar do prédio em construção, nunca mais o sol iluminou o chão de madeira. E eu sabia disto desde a fundação do prédio e o que eu fiz, senão fingir que o sol não era meu? Se ele era. Assisti cada tijolo colocado, engolindo meu sol e fui me acostumando com o escuro e o frio de um chão sem raios luminosos.

  Roubaram a minha calma e no lugar dela deixaram essas pálpebras que vezenquando tremem, essa vontade de futuro todos os dias, como se hoje já pertencesse a um passado inútil. Violam minha esperança de oito da manhã às seis da tarde, quando não veem, não escutam, não tentam entender e já  atropelam com a ignorância raivosa de quem só tem um mesmo lado e que é sempre tão estreito e obscuro que os outros se limitam às margens. Sequestraram a poesia popular e no lugar dela implantaram os insultos velados, as conversas cifradas, a inalcançável sabedoria. Levaram a bolsa ontem, mas noutros dias levam meus sonhos, minha vontade de cantarolar na rua, o canto dos pássaros da mata tomada pelo fogo e construção, tiraram a luz do meu quarto, as cores de gentileza dos meus dias, a paciência dos caixas dos supermercados e juiz nenhum delibera a meu favor. Testemunha nenhuma enxerga a minha dor, não tenho um advogado que me defenda.

  Assaltaram minha esperança quando olhei para os dois meninos e sabia que não poderia pedir nada, nem a eles, nem por mim, nem por eles. Levaram a bolsa e eu roguei que a medalhinha na carteira e a folha de louro, dessem a eles proteção e prosperidade, porque dinheiro mesmo quase nunca tenho.
Mais uma gota cai do teto no balde cinza. Aviso que vou embora.
- Foi só a bolsa. Não levaram nada.  E os documentos, amanhã acordo cedo para tirar uma nova foto.
  A digital é a mesma e eu ainda tenho os sapatos. Não perdi nada, se não me lembro mais delas. Volto para casa cheia das coisas que não me roubaram porque nunca couberam na bolsa.



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